A imensa procura por ingressos para o espetáculo Grande Sertão: Veredas inquietava sua diretora, Bia Lessa. Espetacular transposição para o palco da obra de Guimarães Rosa, a peça exibe toda a riqueza da arte teatral para ativar a imaginação como preservar as palavras do escritor mineiro. Com a impossibilidade de aumentar a já alargada turnê de Grande Sertão, Bia decidiu filmá-la. “Assim, o trabalho poderia atingir mais pessoas e em cidades onde a montagem não consegue chegar”, diz ela, que está no processo de edição do material captado.

Importante ressaltar: não se trata de uma simples documentação fílmica do trabalho criado para o palco – Bia utiliza de recursos cinematográficos para surpreender uma vez mais, dessa vez na tela grande. Sua versão para o palco, ainda em cartaz no Sesc Pompeia, é um estímulo para os sentidos, uma vez que os atores se dividem em diversos papéis (tanto humanos como plantas e animais) para acompanhar a saga do jagunço Riobaldo (Caio Blat) ao atravessar o sertão para combater seu grande inimigo, Hermógenes (Leon Goes). Riobaldo é o homem atormentado tanto pela dúvida sobre a existência do demônio como pela paixão inconcebível por alguém que julga ser outro homem, Diadorim (Luíza Lemmertz).

“O que facilitou a transposição para o cinema é que gravamos todos os ensaios, pois não sabíamos, no início, para onde o processo nos levaria”, lembra Bia. “Em determinado momento, concluímos que o processo até poderia ser mais importante que o resultado final. Nos primeiros ensaios, o que interessava era chegar à vida, esquecer teatro, interpretação. No início, trabalhamos com cenas soltas, frases, às vezes parágrafos. Nosso desafio era romper limites, pensar em estar, em ser, de forma radical. E, no terceiro ensaio, já nasceu aquela mistura de gente, bicho, planta.”

Para a versão cinematográfica, que vai se chamar Travessia e deve estrear no segundo semestre, Bia concentrou-se com elenco e uma equipe de cinema em um enorme galpão. Para isso, foi preciso abrir mão da gaiola – a estrutura tubular colocada no teatro, na qual as cadeiras são colocadas em forma de U, onde, na região central, os atores permanecem durante todo o espetáculo, cuja duração é de ininterruptas 2h40. E, a fim de abrir mão de cenário – exigência habitual do cinema, que trabalha com o realismo -, a diretora pediu que tudo (chão, paredes, telhado) fosse escurecido por uma tinta preta. “Como se não fosse mais a solidão do confinado, mas sim a solidão do nada, lugar nenhum. Nesse espaço vazio, o sertão é quase uma abstração. E a violência mais temida é a do confinamento.”

Como o espaço do galpão era maior que o do teatro, Bia convocou outros dez atores para engrossar as cenas de luta e caminhadas. O curioso é que, para a versão teatral, ela utilizou a linguagem cinematográfica, especialmente para construir a sonoridade – no teatro, o espectador pode usar fones de ouvido, pelos quais escuta separadamente a trilha sonora composta por Egberto Gismonti, as vozes dos atores, os efeitos sonoros e sons ambientes, levando-o a um nível inédito de interação com a dimensão sonora do espetáculo.

“Meu dilema foi trazer isso para o cinema sem perder a originalidade”, conta a encenadora, que se valeu de um ensinamento do cineasta suíço Jean-Luc Godard: “Ele se incomodava, no cinema, com o fato de um ator, para falar de uma maçã, ter de mostrar uma maçã. Para Godard, o cinema precisa mostrar o que não é óbvio, ou seja, usar uma lente microscópica ou uma lente de aumento, para então ver uma maçã que não conhecemos”.

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Assim, ela consegue a licença poética para mostrar o ator Caio Blat como Riobaldo e também como um cacto e um sapo. Um belo exemplo de cinema artesanal, cuja intenção é revelada já na primeira cena: a câmera postada no alto flagra a chegada dos atores, que param em uma posição triangular. Em seguida, todos se transformam em pássaros para, em seguida, se levantarem, voltarem à posição e sair, novamente como homens.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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