Quando entrarem em campo logo mais, no estádio Centenário, em Montevidéu, às 20h (horário de Brasília), Uruguai e Brasil disputarão um dos maiores clássicos do futebol mundial. Afinal de contas, são duas das seleções mais vitoriosas da história. Na Copa América, ninguém levantou mais taças que a Celeste: 15, a última delas em 2011. Quando o assunto é Copa do Mundo, a Canarinho mantém a supremacia com seus cinco títulos. Em campo, trata-se de um “confronto de sete títulos mundiais”. Ou de nove?

Em novembro de 2008, na preparação para a reta final das Eliminatórias para a Copa do Mundo de 2010, a seleção uruguaia viajou até Paris para encarar a França em um amistoso internacional. Meses antes, os franceses tinham fracassado retumbantemente na Eurocopa, caindo na fase de grupos, e o técnico Reymond Domenech começava um processo de renovação do elenco vice-campeão mundial em 2006. A oportunidade de enfrentar o Uruguai era vista como importante na nova etapa. E o amistoso foi promovido como “o encontro das cinco estrelas”.

O Uruguai fala com orgulho (e não poderia ser diferente) das conquistas nas Olimpíadas de 1924 e 1928. Precursores da Copa, eram nos jogos onde se reuniam (quase todas) as principais seleções. E havia uma unanimidade: o vencedor era consagrado como campeão do mundo. É por isso, somado aos triunfos em 1930 e 1950, que o Uruguai reivindica o tetracampeonato mundial.

– As edições de 24 e 28 foram catalisadoras para a criação do Campeonato Mundial, organizado pela FIFA, principalmente com a final sul-americana em 1928 (entre Uruguai e Argentina), que foi repetida dois anos depois. As demais edições do futebol masculino nos Jogos Olímpicos haviam contando apenas com seleções europeias, e o Uruguai rompe essa lógica, sustentado pelo domínio nos campeonatos Sul-Americanos – conta o historiador e jornalista Matias Pinto, da Central 3.

As marcas dos ouros em solos francês, em 24, e holandês, em 28, ficarão eternamente expostas em um dos maiores monumentos do futebol uruguaio. Isso porque as duas arquibancadas atrás dos gols no Centenário são carinhosamente designadas com os nomes das cidades onde a Celeste foi campeã nos anos 20: Colombes e Amsterdam. Para o escritor Eduardo Galeano, em uma de suas obras mais famosas, “Futebol ao Sol e à Sombra”, o fato de um sul-americano ter vencido duas vezes na Europa naquele período foi “o segundo descobrimento da América”.

– A principal torcida do Peñarol é batizada como “Barra Amsterdam”, porque sempre que o Carbonero jogava de local na maior cancha de Montevidéu era o setor onde a torcida deles ficava – diz Matias.

A FIFA não foge da polêmica e, desde 2010, reconhece as quatro estrelas que Associação de Futebol do Uruguai utiliza no uniforme, ainda que essa aprovação leve uma espécie de asterisco. Na seção uniformes no seu site oficial, a entidade acata o Uruguai como “tetracampeão mundial, mas bi-campeão da Copa do Mundo”, o que deixa no entrelinhas a distinção entre os torneios. No pequeno país ao norte do Rio da Prata, o discurso é de defesa incondicional do tetra, independentemente das competições.

– O Uruguai usa quatro estrelas na sua camisa, o que faz com que o tema nunca caia em esquecimento e os mais jovens sempre escutem falar da história. Muitos canais ou portais internacionais separam a partir da Copa de 30, mas o Uruguai ganhou quatro campeonatos, não quatro copas, necessariamente. É o mesmo que perguntar se o Pelé foi campeão do mundo com o Santos ou se só vale a partir de 2000 e depois os demais desde 2005, com a saída do Intercontinental e a chegada do Mundial de Clubes. Grêmio, Santos e Flamengo foram campeões do mundo, mas não ganharam o novo torneio da FIFA. Entende? No fim é tudo polêmico, mas a história está sempre presente – defende Sergio Gorzy, jornalista e apresentador do Canal 4, do Uruguai, e um dos fundadores e diretores da Associação de Historiadores e Investigadores do Futebol Uruguaio.

O INÍCIO

HOME - River Plate-URU x Nacional-URU - Copa Libertadores - Estádio Centenário (Foto: Reprodução/Instagram)

No Centenário, os setores atrás dos gols levam os nomes de Colombes e Amsterdam, cidades onde a Celeste conquistou os títulos em 1924 e 1928 (Foto: Reprodução/Instagram)

Deixando de lado a burocracia de simples nomenclaturas, o que não dá para negar era a força da histórica geração celeste que dominou o futebol de seleções três vezes consecutivas, ao ponto de ser foco constante da procura por ingressos para as partidas.

Fontes na internet relatam que só em jogos envolvendo o Uruguai nas Olimpíadas de 1928 foram mais de 300 mil ingressos vendidos. A final contra a Argentina levou 50 mil pessoas ao estádio de Amsterdam. Presidente da AUF, Atílio Narancio, que hipotecou a própria casa para bancar os custos da viagem dos jogadores à França, declarou, diante da fama da equipe no velho continente, que “agora não somos mais aquele pequeno ponto no mapa mundo”.

Para os europeus, o passeio charrúa foi ainda mais humilhante porque o país não havia passado pelo processo de profissionalização do seu futebol, o que aconteceu só em 1932, seguindo os passos da Argentina, que o fez em 1931 para evitar o maior êxodo dos atletas, e instigando o Brasil a acolher o regime, oficializado em 1934.

Mas o que levou, de fato, à criação do torneio de futebol nos Jogos Olímpicos e consequentemente da Copa do Mundo? A FIFA já tinha deixado claro no fim dos anos 10 a vontade de reunir grandes seleções em um único torneio. A ideia foi tirada do campo teórico e carimbada pela primeira vez em 1923.

Após uma reunião em Genebra, na sede da entidade na Suíça, ficou decretada que a FIFA e a Federação Francesa de Futebol, ambas presididas por Jules Rimet, organizariam a disputa nas Olimpíadas de Paris e Amsterdam e as fases de qualificações. O Uruguai, por exemplo, obteve passaporte por ter vencido o Sul-Americano de 1923.

A imprensa europeia destacava, meses antes da bola rolar, que “daqui a alguns meses conheceremos o primeiro campeão mundial de futebol”. O sucesso foi tanto que tornou-se inviável não separar as competições. Dessa forma, nascia, agora independente, a Copa do Mundo, em 1930.

O Uruguai venceu todos os seus cinco jogos em Paris, com destaque para o 7 a 0 na estreia contra a Iugoslávia, o 5 a 1 nas quartas de final contra a França, e o 3 a 0 na final contra a Suíça. Em Amsterdam, foram quatro vitórias e um empate. A final contra a Argentina colocava lado a lado os favoritos e por isso o equilíbrio foi tônica no confronto. Com o 1 a 1 nos 90 minutos iniciais, seria preciso um jogo extra para definir o campeão. E aí a Celeste levou a melhor vencendo por 2 a 1.

France Football

Às vésperas do início das Olimpíadas de 24, o jornal France Football apresentava o “torneio mundial de futebol” (Reprodução)

O impacto dos títulos foi tão forte que o Uruguai é muito conhecido até nos dias atuais como “Celeste Olímpica”. A comemoração dos jogadores também ganhou uma alcunha: quando o árbitro encerrou o duelo contra os suíços, a volta completa do elenco em todo o estádio foi chamada de “volta olímpica”, atualmente bem mais tradicional, mas à época uma celebração icônica.

– Houve poucas mudanças no time nos três títulos até pela dinâmica do futebol de seleções à época. Existem casos de uruguaios que foram campeões em 24, 28 e 30, como José Leandro Andrade, conhecido como ‘La Maravilla Negra’, que também ganhou fama entre o público europeu em uma excursão do Nacional à Europa – comenta Matias Pinto.

Para os meios de comunicação, o Uruguai havia “anexado” os títulos quando voltou a vencer a Argentina na decisão de 1930. Em 1950, Carlos Solé, célebre narrador uruguaio, relatava com convicção a epopéia no Maracanã contra o Brasil: “campeões do mundo pela quarta vez, jamais imaginamos isso”.

AS CAMPANHAS

Uruguai Seleção Olímpica 1928

O elenco uruguaio campeão olímpico em Amsterdam, em 1928 (Reprodução)

OLIMPÍADAS DE 1924
Primeira rodada:
Uruguai 7×0 Iugoslávia
Segunda rodada: Uruguai 3×0 Estados Unidos
Quartas de final: Uruguai 5×1 França
Semifinal: Uruguai 2×1 Holanda
Final: Uruguai 3×0 Suíça

OLIMPÍADAS DE 1928
​Primeira rodada:
Uruguai 2×0 Holanda
Quartas de final: Uruguai 4×1 Alemanha
Semifinal: Uruguai 3×2 Itália
Final: Uruguai 1×1 Argentina
Final, jogo extra: Uruguai 2×1 Argentina