Querela entre ativistas e moradores arrastou o rebatismo do logradouro Mohrenstrasse, considerado racista por sua conotação pejorativa. Novo nome homenageia filósofo negro.Após uma batalha jurídica que durou cinco anos, Berlim rebatizou oficialmente neste sábado (23/08) a antiga rua Mohrenstrasse, na região central da cidade, criticada pela conotação racista de seu nome.
A mudança só foi possível após uma decisão do Tribunal Administrativo Superior do estado, tomada na última sexta-feira, que rejeitou uma tentativa de última hora de barrar o ato.
O novo logradouro, Anton-Wilhelm-Amo-Strasse, homenageia um filósofo negro do Iluminismo alemão, que em 1734 se tornou o primeiro estudioso nascido na África a receber um doutorado europeu. A estação de metrô da rua também foi rebatizada sob o mesmo nome em um evento que reuniu representantes da prefeitura e ativistas antirracistas.
Uma longa jornada até a Anton-Wilhelm-Amo-Strasse
A disputa jurídica teve início em em 2020, quando o conselho distrital de Berlim-Mitte aprovou a eliminação do logradouro Mohrenstrasse na esteira dos protestos antirracistas que tomaram a capital alemã e outras partes do país.
O objetivo seria eliminar o "nome de origem racista, que criminaliza e fere a reputação nacional e internacional de Berlim".
Mohren é uma palavra antiga da língua alemã utilizada inicialmente como referência ao termo "mouros" para denominar de forma racializada os muçulmanos da Europa e do Norte da África.
No século 18 o vocábulo passou a ser utilizado para designar pessoas negras sob uma conotação pejorativa e preconceituosa. No alemão moderno, o termo caiu em desuso.
Mas antes que a decisão fosse implementada, um grupo de moradores e comerciantes locais entrou com uma ação judicial contra a mudança, argumentando que o termo não carregava tal conotação quando a rua foi batizada, em 1706.
Em 2023, o Tribunal Administrativo da capital alemã permitiu a renomeação, mas os moradores recorreram da decisão. A disputa só foi decidida em julho de 2025, quando o Tribunal Administrativo Superior de Berlim-Brandemburgo referendou o entendimento de que os moradores não tinham base legal para contestar a mudança do nome.
Em agosto, o grupo denominado "pró-Mohrenstrasse" peticionou a mesma corte como uma última tentativa de barrar o ato, mas os juízes endossaram a decisão anterior e liberaram a troca de placas da rua.
Nome também remete à escravidão
"A descolonização não acontece apenas mudando alguns nomes de ruas", disse à DW na sexta-feira o cientista político e ativista de direitos humanos Joshua Kwesi Aikins.
A atual Anton-Wilhelm-Amo-Strasse atravessa o bairro histórico da atual capital alemã, a poucos passos do reconstruído Palácio de Berlim, símbolo do poder monárquico à época das incursões coloniais à África.
Ela também passa perto da antiga residência do chanceler federal alemão e do local onde se realizou a Conferência de Berlim de 1884-1885, em que líderes europeus "discutiram como poderiam dividir a África", nas palavras do escritor britânico-ugandense radicado em Berlim Musa Okwonga.
Essa conferência deu início ao domínio colonial da Alemanha na Namíbia.
Para os ativistas que defendiam a mudança, as conotações racistas da palavra Mohren derivam ainda da prática do século 18 de trazer africanos escravizados para a Alemanha como "mouros da corte", forçados a trabalhar como servos ou a entreter os reis prussianos como músicos.
"O nome dado à rua no início do século 18 transporta essa experiência racista de violência contra pessoas negras em Berlim para o presente", escreveu o historiador Christian Kopp, da iniciativa Decolonize Berlin-Mitte.
Ativistas costumavam pichar um trema no "o", transformando a palavra em Möhren (cenoura), dando um sentido mais leve à nomenclatura.
Anton Wilhelm Amo foi primeiro filósofo negro na Alemanha
A maior parte dos escravizados enviados à Europa partiam da colônia brandemburgo-prussiana situada no atual Gana, que existiu entre 1682 e 1721.
É de lá que o homenageado Anton Wilhelm Amo foi levado como escravo à Europa por volta de 1703. Em 1707, o mesmo ano em que a Mohrenstrasse foi batizada, ele foi presenteado ao duque alemão de Braunschweig-Wolfenbüttel.
O duque financiou seus estudos e o incentivou a seguir a vida acadêmica, o que lhe permitiu concluir o doutorado. Sua tese em Direito, na Universidade de Halle, hoje perdida, tinha o título "Os Direitos dos Negros na Europa". Ele escreveu ainda uma segunda tese de doutorado em Filosofia, na qual dialogava criticamente com René Descartes e suas ideias sobre a dualidade mente-corpo.
Amo aulas nas universidades de Halle e de Jena, mas levava uma vida difícil e, em 1747, retornou a Gana, onde faleceu em data desconhecida.
Amo é lembrado como o primeiro filósofo de origem africana na Alemanha, embora tenha sido amplamente apagado da história intelectual europeia.
Alemanha enfrenta passado colonial
Apesar de a rua ter sido nomeado há mais de 300 anos, a estação de metrô homônima havia recebido este batizada somente em 1991, após a reunificação da Alemanha. Antes, levava o nome de Otto-Grotewohl-Strasse, em homenagem a um político da Alemanha Oriental.
O uso do termo racista já havia sido criticado na época pela pioneira ativista negra alemã May Ayim, poeta de origem ganesa que cofundou em 1986 a Iniciativa de Pessoas Negras na Alemanha.
Ayim dedicou-se a expor o racismo velado na Alemanha reunificada. Nos anos 1990, opôs-se fortemente ao nome da rua, que para ela simbolizava o fato de que a comunidade negra alemã havia sido excluída do processo de reunificação, essencialmente branco, após a queda do Muro de Berlim.
Em 2010, um trecho da margem do rio em Kreuzberg foi rebatizado em homenagem a Ayim, falecida em 1996. Foi um dos primeiros atos de descolonização em Berlim, já que anteriormente o local homenageava Otto Friedrich von der Groeben, fundador, no final do século 17, da colônia brandemburgo-prussiana em Gana.