Ben Affleck já recebeu Oscar de roteiro (com Matt Damon, por Gênio Indomável, filmado por Gus Van Sant) e filme (Argos, que ele próprio dirigiu). Poderia agora ser indicado para melhor ator, se a Academia tivesse apreço pelos astros de ação, que, afinal, pagam as contas da indústria. Affleck, the boy next door, com seu tipo comum, não deu muito certo como herói de ação – Pearl Harbor, Jack Ryan etc -, pelo menos até o seu torturado Batman. A empresa produtora e distribuidora Warner ficou tão contente com Batman (contra Superman) que até convocou o astro para dirigir o próximo filme do Cavaleiro das Sombras. Enquanto isso, Affleck excede em O Contador.

É seu melhor trabalho como ator. Não é sempre que se vê um herói autista e, no final, para quem aguarda os créditos, há um batalhão de consultores – sobre matemática e autismo – que deram assessoria para que a abordagem fosse acurada. Numa entrevista, o diretor Gavin O’Connor disse que nada pesou tanto como o fato de ele ter um ‘buddy’ (amigo), cujo filho é autista. Um pouco por fidelidade ao amigo, O’Connor quis ser o mais verdadeiro possível.

Não é um diretor muito conhecido, mas Guerreiro, de 2011, que mostra o combate de dois irmãos no ringue, tem muito a ver com o novo filme. Entre ambos, O’Connor fez o western Jane Got a Gun, com Natalie Portman, que saiu somente em DVD no Brasil (como Em Busca de Justiça). Fez na brodagem, quando a diretora original mandou-se do set, logo na primeira encrenca, deixando a produção.

Logo na abertura de O Contador, os pais levam par de irmãos ao especialista. Um deles sofre de uma síndrome neurológica. O irmão está ali para acompanhá-lo, e apoiar.

Rapidamente desenha-se o conflito que vai dividir a família. A mãe quer tratar o filho de um jeito. O pai, militar, de outro. Convencido de que o ‘diferente’ desestabiliza as pessoas e a reação é excluí-lo, ele se vale de outro tipo de especialistas para treinar o filho para a guerra. O garoto recebe tratamento de choque. É treinado para bater e arrebentar, antes que o atinjam. Isso, é claro, desconcerta, mas remete ao tema central da obra de um dos mais importantes autores de Hollywood – Arthur Penn. Para ele, em clássicos como Um de Nós Morrerá, Caçada Humana e Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas, a verdadeira tragédia americana é essa capacidade que a sociedade dos EUA tem de só resolver seus conflitos pela violência.

Críticos (?) andaram chamando o filme de esquizofrênico e trataram como defeito o que é sua qualidade. O Contador não é um filme terapêutico, ou só terapêutico, mostrando como o herói desenvolve suas habilidades e supera limitações. Na verdade, ele nunca supera completamente. E o roteiro de Bill Dubuque, como bom ‘pulp’, mistura várias linhas – linhas demais, para quem acredita que, por ser ação, o filme tem de ser simplificado.

Maniqueísta, talvez? Se fosse, também iam reclamar. Existem a origem familiar e a transformação do protagonista no contador. O agente do Tesouro que quer saber quem é ele e recruta mulher com passado nebuloso (criminoso?) para rastrear suas atividades na rede. O milionário que contrata o contador para uma auditoria em sua empresa. Dinheiro está sendo roubado, ou assim parece. Surge um assassino profissional que, com seu staff, começa a fazer uma limpeza, para proteger alguém (quem?) na empresa. E ainda existe a garota que vai subverter a vida do contador. Por ela, Christian Wolff (é seu nome) vai sair da sua zona de segurança, correr riscos.

Muita coisa, e boa parte desses conflitos não é puramente física. Existe o dilema moral do diretor King e da agente Medina. Existem as questões da paternidade, e da fraternidade. A afirmação a seguir pode parecer controversa, mas O Contador dá conta de tudo e, no limite, é o que o diferencia de outros thrillers aparentemente mais focados, mas que, na realidade, são só mais chapados num conceito de ação e reação para que a história ande. O melhor de O Contador são certos momentos intimistas. O diálogo do herói com a garota, com seu histórico de dificuldade de inserção social, o reencontro com o irmão. A história do vestido de Dana (Anna Kendrick) é muito interessante. A solidão do herói, e mais que a solidão, a forma organizada e metódica como ele leva a vida. Num determinado momento, quando sai de sua conduta ‘robótica’, Christian diz com evidente angústia que precisa terminar o que começou.

Como ‘herói’, e por sua condição particular, ele realiza a mística dos mocinhos que, desde Shane – Os Brutos Também Amam, de George Stevens, de 1953 -, são condenados à vida errante. Há uma trágica impossibilidade de contato, físico e até visual. Quando Dana ensaia o beijo, Christian foge. Ben Affleck é perfeito. Assume a ‘matemática’ do seu roteiro com Matt Damon e encontra o seu herói, como o amigo encontrou o dele em Bourne.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.