23/09/2020 - 18:44
Jean-Michel Basquiat (1960-1988) é a prova de que toda regra pode ter uma exceção. Ele foi descoberto por Andy Warhol, com quem teve uma amizade íntima e formou uma dupla incomum por cerca de cinco anos. Warhol era um mestre da pop art quando descobriu Basquiat, um jovem artista que era rejeitado por todos na época. Durante a sua curta vida, deixou o status de morador de rua para se transformar em um dos artistas americanos mais importantes da era moderna, deixando um legado impressionante.
Como artistas, eles eram totalmente diferentes: Warhol investia na repetição por meio do uso da tecnologia, enquanto Basquiat se concentrava em redundâncias feitas à mão. Ao contrário de situações nas quais o mestre fala e o assistente executa, Warhol e Basquiat trabalhavam em um esquema de co-criação no qual os dois queriam deixar suas caraterísticas nas obras e, ao mesmo tempo, brilhar como artistas famosos na frente dos trabalhos.
Durante o período que trabalharam juntos, Warhol era uma metamorfose ambulante –para fazer coro à música de Raul Seixas–, sem medo de ter novas opiniões sobre nada e sem receio de mudar ou de inovar. Eles levaram o amor e o ódio ao limite, estendendo a competição entre homem branco e negro, entre artista famoso e um Zé Ninguém, e entre criação estruturada e instantânea. Eles criavam um campo próprio, deixando uma marca única nos trabalhos.
O mundo da arte acompanha não só as obras de Basquiat, mas sua trajetória repleta de curiosidades, como:
1 – Ficou fascinado por anatomia quando era criança – Aos oito anos, foi atropelado por um carro enquanto brincava na rua, o que resultou em um braço quebrado e graves lesões internas. Enquanto ele estava se recuperando no hospital, sua mãe deu de presente uma cópia do livro Gray’s Anatomy para ele ver as figuras e entendesse o que ocorreu no seu corpo após aquele acidente horrível. Os desenhos anatômicos detalhados do livro foram uma revelação para o menino e influenciaram seu trabalho artístico por toda a sua vida, uma vez que pintou muitos corpos e crânios desfigurados. O uso de caveiras por Basquiat também está profundamente enraizado em sua identidade como artista negro na América. Ele incluía máscaras africanas em seus desenhos, da mesma forma como os modernistas e Picasso se apropriaram dessas imagens e de seus contextos nativos. Para Basquiat, os crânios eram gestos em direção à recuperação cultural. Eles também lembram a herança haitiana do lado paterno e a religião vodu, que é repleta de simbolismo de caveira.
2 – Ele nunca frequentou escola de arte – A história de que é preciso ter uma grande formação acadêmica para ser artista é uma grande balela. Basquiat foi reprovado nos cursos de arte que fez. Por isso, pode-se dizer que ele foi autodidata e que aprendeu tudo o que sabia nas ruas de Nova York e nos museus da cidade, incentivado pela mãe. Talvez por isso, a crítica era cruel com ele. A revista Time, por exemplo, o apresentou como o “Eddie Murphy do mundo da arte” e destacou em reportagem que as pessoas gostavam dele por sua persona “jovem, barulhenta e burra”. Pouco antes de morrer, o cenário já era outro. O New York Times dedicou uma das capas do jornal para elogiar seu trabalho. Independente dos céticos, Basquiat era um ávido seguidor de Warhol, que por sua vez irritava todo mundo porque gostava tanto dos traficantes de rua quanto dos capitalistas ricos. A colaboração entre a dupla foi também um meio para Warhol ressuscitar o agito de sua carreira, abandonando os clientes chatos que tinha (predominantemente empresários ricos, velhos e brancos).
3- Grafite foi a base de sua expressão artística – Basquiat e seu amigo Al Diaz estavam dividindo um grande baseado quando começaram a filosofar que a erva era a mesma porcaria todos os dias. A brincadeira gerou o pseudônimo ‘SAMO’ (“Same Old Shit” – risos!). Em anonimato, eles começaram a lotar os muros e prédios de Nova York com seus grafites e a assinatura SAMO©, da mesma forma como Banksy faz atualmente. Os nova-iorquinos viam os desenhos, mas não sabiam quem era o artista autor. Só tempos depois que descobriram.
4- Vendeu um trabalho para Andy Warhol antes de se tornar famoso – Pouco antes de seu trabalho ser vendido por milhões de dólares, Basquiat não tinha o que comer e lutava para sobreviver. Um dia, na década de 1970, ele avistou Andy Warhol em um restaurante chinês frequentado por artistas. Com a cara e a coragem, entrou no local e vendeu para Warhol uma série de suas xeroxes respingadas de tinta. Mais tarde, eles se tornaram amigos, colaboradores e, também de certa forma, rivais.
5- Inventou uma nova linguagem visual – Seu trabalho refletia uma profunda compreensão de escrita e poesia de vanguarda. O estilo único de Basquiat de reestruturar figuras anatômicas e seu uso de cores era algo que o mundo da arte nunca tinha visto de um artista tão jovem. Aids, apartheid e proliferação nuclear eram as preocupações da época. Juntos, Warhol e Basquiat deram voz a esses símbolos e foram precursores da era dos emojis.
6- Morava nas ruas de Nova York, mas ficou famoso cedo – Basquiat era filho de um haitiano com uma nova-iorquina de origem porto-riquenha. Por isso, falava espanhol, francês e inglês desde pequeno. Ele teve uma adolescência complicada. Primeiro, fugiu de casa e, depois, foi expulso pelo pai por ter abandonado os estudos. A saída foi morar com amigos de favor e se virar para sobreviver nas ruas de Nova York, como mendigo ou como vendedor de desenhos. Portanto, sua arte se desenrolou nas ruas e metrôs de Nova York nas décadas de 1970 e 1980. Ao ser descoberto, teve uma carreira meteórica. Aos 21 anos, ele já estava viajando para a Califórnia para uma exposição solo em uma galeria e expondo na Alemanha como o artista mais jovem. Teve produção intensa de 1981 a 1982, chegando a criar 250 pinturas e 500 desenhos, muitas vezes trabalhando em várias pinturas ao mesmo tempo. Vendia suas pinturas por 25 mil dólares cada, uma fortuna para quem não tinha sequer um colchão para dormir.
7 – Curtia muita música – Basquiat gostava de música e sempre ouvia algo quando estava criando algo. Foi influenciado por jazz e hip-hop, e uma de suas bandas foi batizada como ‘Gray’, em homenagem a Gray’s Anatomy, a tal enciclopédia que ele estudou de cabo a rabo na cama do hospital. Teve outra banda chamada “Noise Rock”, também nomeada a partir da influência do livro de anatomia. Ele produziu um disco de rap intitulado “Beat Bop” (1983) e desenhou a capa do single. Ele chegou a ser um astro do rock e namorou Madonna em 1982, quando ambos ainda não tinham chegado à fama e ao estrelato.
8- Sofreu racismo – Apesar de seu sucesso, a questão racial cobrou seu preço. Para ele, ser reconhecido como um importante artista era muito mais importante que ser favorecido, de alguma forma, simplesmente por ser um artista negro. Em 1983, o artista Michael Stewart foi espancado até a morte pela polícia de Nova York depois de ser pego grafitando um muro. Basquiat entrou em pânico, pois essa violência poderia ter acontecido com ele. Sua raça era extremamente importante para a narrativa de seu trabalho e Basquiat sempre foi ciente de que era o único homem negro em todo o mundo da arte. Que pena que o mundo das artes ainda tenha preconceito contra negros, mulheres e gays.
9 – Trabalho secreto – Basquiat usou tinta invisível e deixou desenhos secretos em suas obras, visíveis a partir do uso de luzes especiais. É emocionante descobrir algo que foi colocado propositalmente pelo artista em algumas de suas obras. A descoberta foi quase por acaso, durante uma verificação de rotina que é feita com raio com luz infravermelha para detectar verniz ou outros sinais de reparo em obras de arte. Não se sabe se Basquiat fez isso apenas como uma espécie de guia enquanto trabalhava ou se usava a técnica de apagamento nas pinturas, deixando rastros. A tinta invisível surgiu séculos antes de Cristo em comunicações secretas, mas pouquíssimos artistas usam. Uma exceção foi Aowen Jin, um artista britânico nascido na China e que produziu várias ilustrações feitas à mão com tinta invisível, também de forma proposital.
10- Morreu cedo– O mundo da arte é cruel e diz que a melhor coisa que um artista promissor pode fazer é morrer jovem para valorizar seu trabalho. Com isso, suas obras ganham um outro valor de mercado. Como muitos artistas da época, Basquiat recorreu às drogas para lidar com as pressões do sucesso e o fracasso de sua amizade com Andy Warhol. Quando morreu em 1988, a Vogue pediu para Keith Haring escrever seu obituário. Ele elogiou: “Em 1979, logo depois de chegar a Nova York, comecei a acompanhar o trabalho [de Jean-Michel]. Quem vivia no centro de Manhattan nessa época sabia da presença do SAMO©. As frases estavam pulverizadas sobre edifícios, pontes e paredes em ruínas e pareciam ser a expressão de algum filósofo recém-nascido. O trabalho era de Jean-Michel Basquiat”. Após sua trágica morte por overdose acidental de heroína aos 27 anos, colecionadores correram atrás de suas obras que valorizaram a ponto de serem leiloadas por mais de 110 milhões de dólares. Seu trabalho ultrapassou o valor de mercado de Andy Warhol.
Para quem ainda não teve a chance de apreciar as obras de Basquiat, vale a pena fazer o tour virtual criado pela The Brant Foundation’s especialmente para os tempos de pandemia de Covid-19. Há também um filme sobre sua vida, no qual David Bowie representa Andy Warhol. Se alguém desejar compartilhar uma boa história sobre o mundo da arte, estou no Instagram Keka Consiglio, Facebook ou no Twitter.