O posto de ministro da Fazenda não é para fracos. Nas últimas décadas, a pasta virou uma prova de fogo. Dois titulares que conseguiram fazer a diferença e estabelecer políticas duradouras de crescimento tiveram o apoio decisivo do mandatário para isso: Pedro Malan, nos anos 1990, e Antonio Palocci, no primeiro mandato de Lula. Mas o petista não parece disposto a repetir o voto de confiança com Fernando Haddad, que tem lutado contra o próprio partido para manter seu compromisso com a responsabilidade fiscal – única forma de domar a inflação e permitir a queda dos juros.

Haddad já tinha sido desautorizado pelo presidente na virada do ano, quando tentou reverter sem sucesso uma das medidas mais escandalosas de Jair Bolsonaro: a eliminação de impostos sobre combustíveis para abaixar artificialmente a inflação na reta final das eleições. Mas o PT e o chefe do Executivo não quiseram inaugurar a nova gestão com um tarifaço impopular e adiaram a decisão por dois meses. Desta vez, Haddad não aceitou. Falou ao presidente que não iria concordar com mais um adiamento, que colocaria em risco sua credibilidade e jogaria por terra um compromisso assumido no dia 12 de janeiro. Nessa ocasião, ele anunciou o plano para diminuir o déficit fiscal neste ano de 2,3% do PIB para menos de 1%. Para manter essa meta, seria necessário arrecadar R$ 28,9 bilhões com a volta da taxação.

O objetivo foi mantido, mas exigiu muita criatividade. O PIS e o Cofins, zerados há oito meses, vão voltar parcialmente e fazer o litro de gasolina subir R$ 0,47. O litro de álcool, R$ 0,02. Ao mesmo tempo, a Petrobras anunciou uma redução de 3,93% no valor da gasolina para as distribuidoras (R$ 0,13 por litro), o que levará o aumento nas bombas para R$ 0,34 por litro (esse acréscimo poderia chegar a R$ 0,89, se houvesse uma reoneração total). O argumento foi que, no momento, a defasagem entre o preço internacional e o doméstico do combustível permitia essa redução (a petroleira teria um “colchão” para ser usado, nas palavras de Haddad). Ou seja, na prática, a estatal foi usada para amenizar o impacto, o que traz à memória os tempos de intervenção que quase quebraram a companhia. Além disso, foi criado um imposto provisório para a exportação de óleo cru de 9,2%, o que também vai afetar as contas da Petrobras. E essa novidade é um péssimo sinal para os investidores. A taxação desrespeita a regulação, traz insegurança jurídica e é uma medida que já se provou danosa na Argentina, onde ajudou a afundar a economia. O casuísmo era defendido pelo novo presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, que conseguiu impô-lo contra a vontade de Haddad. Previsto para durar quatro meses, pode se eternizar, temem os economistas.

ANÚNCIO Haddad confirma a volta do imposto sobre combustíveis na quarta-feira (Crédito:Ton Molina)

São na verdade gambiarras econômicas para evitar as más notícias: será necessário um sacrifício para reorganizar as contas públicas. É essa a bandeira de Haddad. Ele procura reproduzir a política do primeiro governo Lula, que mostrou disciplina fiscal contra a tentação eleitoreira de expandir os gastos ou intervir artificialmente nos preços administrados. Isso gerou crescimento sustentado e altos índices de popularidade após oito anos, apesar da tensão inicial. Henrique Meirelles, presidente do Banco Central na época, contou com o apoio de Lula para garantir essa política. Hoje, ele elogia a atuação do atual ministro da Fazenda: “As possibilidades de Haddad prevalecer são substanciais. Ele tem a confiança do presidente. Acredito que está indo no caminho certo”.

“Reonerar os combustíveis agora é penalizar o consumidor, gerar mais inflação e descumprir compromisso de campanha” Gleisi Hoffmann, presidente do PT

Mas esse respaldo não parece irrestrito. E certamente falta no círculo de apoiadores mais próximos de Lula. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, liderou as críticas à reoneração dos combustíveis e é uma conhecida rival de Haddad. E ela nem é a maior dor de cabeça do ministro. É um segredo de polichinelo que o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, cobiça a vaga do titular da Fazenda. Mercadante até providenciou uma comissão no banco para debater o novo arcabouço fiscal, atravessando a delicada e trabalhosa proposta em elaboração pela equipe do colega. Haddad permanece à mercê do fogo amigo petista. Ironicamente, o mercado desconfiava dele quando foi indicado para comandar a Economia. Hoje, o setor produtivo conta principalmente com ele para que o governo não volte à farra orçamentária da era dilmista.

Tudo depende das intenções de Lula, que, até agora, parece inclinado a reproduzir a política econômica de sua antecessora, apesar do seu conhecido faro político. “O Fernando Haddad está lá para fazer o que o Lula quiser. Nesse cabo de guerra com a Gleisi Hoffmann, ele vai ganhar algumas, mas acho que vai perder a maioria, porque não é esse o programa que está na cabeça do presidente”, alerta Alexandre Schwartsman, ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central. “Haddad está imbuído do cargo e pressionado pelos pares do PT-raiz por algo que sabe que pode dar errado. Lula lança frases, colhe respostas e as analisa. Sabe ouvir. É uma prática antiga e pragmática”, pondera Horácio Lafer Piva, ex-presidente da Fiesp.

Por enquanto, Lula não tem poupado sua artilharia. As repetidas críticas ao presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e às taxas de juros têm diminuído a confiança na queda da inflação e pressionado a alta do dólar. Nada disso ajuda seu ministro da Fazenda. Já Haddad costura uma relação harmoniosa com Campos e lembrou que a reoneração dos combustíveis vai ajudar o Banco Central a baixar a Selic. Defendeu que a medida não é inflacionária, ao contrário do que os petistas mais exaltados espalharam. Com ele concordam nomes como Marcos Lisboa, presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda entre 2003 e 2005: “Não se combate inflação com medidas de redução de tributos. Isso não resolve o problema de fundo, só cria um alívio de curto prazo, cobrando um preço depois. A desoneração foi uma típica medida populista que custará muito caro para o País mais tarde”.

CRÍTICOS Gleisi Hoffmann e Aloizio Mercadante são os maiores rivais de Haddad no PT (Crédito:Adriano Machado)
Ueslei Marcelino

Custo político

Haddad contraria setores do governo que temiam o custo político do reajuste e veem risco de retração da atividade econômica. Com a taxa Selic em 13,75% e uma possível crise de crédito, não seria a hora de priorizar a diminuição do déficit. Para essa ala, o ajuste precisaria ser gradual para não ameaçar a popularidade do presidente ou abrir espaço para a oposição. O ministro, por outro lado, preocupa-se com o controle de gastos para preservar a estabilidade. Conta para o sucesso do governo com medidas já anunciadas, como o aumento do salário mínimo, a isenção do Imposto de Renda para quem recebe até R$ 2.640 e o programa de negociação de dívidas, o Desenrola, que será anunciado em breve. Sua nova proposta de âncora fiscal, que substituirá o teto de gastos, é a grande aposta para consolidar o apoio do setor produtivo e dos investidores.

REMARCAÇÃO Posto na zona leste de São Paulo reajusta preços na terça à noite (Crédito:Marco Ankosqui)

“O Fernando Haddad entendeu que precisa dançar conforme a música. Ele fez a leitura do cenário econômico de uma forma muito inteligente. Entendeu que precisa ter o mercado do lado dele”, avalia Juliana Inhaz Kessler, professora do Insper. Ela aponta que o governo tinha uma necessidade imensa de recursos por conta das promessas de campanha. Ao reonerar os combustíveis, o ministro ganha a confiança dos agentes econômicos que se preocuparam com o aumento de gastos em medidas como a PEC da Transição. O cientista político da FGV Marco Antônio Teixeira lembra que o titular da Fazenda navega em águas “absolutamente instáveis”, já que carrega a herança do governo Bolsonaro e precisa lidar com o déficit fiscal e combater a inflação. As brigas são naturais. “Isso enfraquece o Haddad? Possivelmente sim, mas dificilmente um ministro da Economia terá seus pleitos atendidos inteiramente. Nem o Paulo Guedes conseguiu isso na maioria das vezes”, defende. Pode ser, mas, nos anos 2000, Palocci e Meirelles contaram com o apoio sólido de Lula para manter a política fiscal e monetária. Nos anos 1990, Pedro Malan também contou decisivamente com FHC para superar vários embates contra seus rivais, como o então ministro do Planejamento, José Serra, e o titular do Desenvolvimento, Clóvis Carvalho, que deixou o governo depois de trombar com o colega. Era a guerra entre as alas “desenvolvimentista” e “monetarista”.

No segundo mandato de Lula, Guido Mantega passou a contar com o apoio irrestrito de Lula e, depois, de Dilma Rousseff. Promoveu uma guinada na economia com a “nova matriz econômica”. Essa política imprimiu forte intervenção estatal, quebrou os contratos no setor energético, tabelou preços públicos e reduziu artificialmente as taxas básicas de juros. Apenas quando esse projeto temerário levou o País à maior recessão da história Dilma trocou seu czar econômico por Joaquim Levy. Mas o novo titular, famoso pela prudência fiscal, foi atacado pelo PT e desautorizado pela própria presidente. No atual governo a situação não é tão grave, mas inspira preocupação. Haddad rema contra a corrente e está sendo obrigado a lutar em várias frentes. Pelo menos conta com o apoio da colega do Planejamento, Simone Tebet, que nunca foi popular entre os petistas e tem agido de forma discreta para evitar saídas fáceis e demagógicas na economia que agradem à militância. “O governo fez o dever de casa”, disse ela sobre a batalha vencida com o retorno do imposto dos combustíveis. Mas as velhas práticas que corroem a credibilidade da gestão estão presentes, como os embates estéreis entre a “ala política” e a “ala técnica” do governo ou a fritura de ministros. Gleisi Hoffmann tuitou suas críticas à reoneração dos combustíveis enquanto Haddad voltava de uma reunião do G20 na Índia, o que o surpreendeu. Ela, aliás, era a vocal ministra da Casa Civil que liderou o governo Dilma até o colapso.

APOIO Haddad com Josué Gomes (dir.) e empresários na Fiesp, em 30 de janeiro (Crédito:Ettore Chiereguini)

Congresso

No entorno de Lula, a atual disputa é encarada como mais uma prova de esperteza política. O presidente ganha ao estimular o dissenso e, no final, ter a palavra final sobre os conflitos na equipe. Mas, dependendo da forma como arbitrar as disputas, ele pode enfraquecer demais seu ministro e comprometer, no fim, a própria gestão. Além da crise em seu próprio quintal, o mandatário precisa angariar apoio no Congresso, onde não tem maioria — ao contrário do seu primeiro mandato, quando chegou a contar com mais de 400 deputados em sua base. Uma matéria de grande interesse para Haddad, a Medida Provisória que restabelece o voto de qualidade no Carf, corre o risco real de ser rejeitada na Câmara. Isso dificultaria o objetivo de diminuir o déficit. A própria MP da reoneração gradual corre o risco de ser derrotada. E o governo precisará de muita articulação para avançar na Reforma Tributária, que por natureza vai desagradar entes federativos, interesses regionais e contrariar poderosos setores da economia. Depois de um começo de gestão atribulado, o ministro saiu vitorioso ao aprovar uma medida politicamente delicada e economicamente correta. Ganhou uma batalha, mas a guerra ainda está por ser vencida.

Colaborou Dyepeson Martins

“Queremos evitar distorções tributárias”
Em entrevista à ISTOÉ, Fernando Haddad diz que volta do imposto do combustível corrige uma ação tomada com interesses eleitorais e diz que nova âncora fiscal já está desenhada e vai trazer previsibilidade às contas públicas, mas não engessamento

A reoneração parcial da gasolina e do álcool foi uma vitória da sua gestão no Ministério?
Não é uma vitória, nem uma derrota. É apenas o realinhamento da tributação no setor, corrigindo uma decisão tomada no ano passado que, embora tenha ajudado a conter a alta da inflação, teve clara intenção eleitoral, gerando desequilíbrios que teriam de ser resolvidos inevitavelmente no começo deste ano. Uma herança complicada, mas que está sendo resolvida agora, com equilíbrio.

Como o sr. vê a ação da ala política do governo que desejava manter a isenção dos impostos?
Todo esse debate sobre a tributação foi realizado com calma, sem atrasos, mas também sem afobamentos, com consultas a todos os agentes, inclusive às diversas alas políticas, que representam parcelas da sociedade. Prova disso é o fato de que, no início do governo, o presidente Lula prorrogou, até 28 de fevereiro, a desoneração dos impostos federais que incidem sobre a gasolina, o álcool, o querosene de aviação e o gás natural veicular. Sem essa decisão, a volta da tributação teria acontecido bem mais cedo. A solução construída foi a mais equilibrada.

Aumentar mais as alíquotas da gasolina, em detrimento do álcool, é uma forma de favorecer a transição energética? Há planos para essa transição energética?
Sustentabilidade ambiental é peça-chave na nova economia mundial e, nesse cenário, o Brasil tem posição privilegiada pelo potencial de geração de energia limpa. Dar maior competitividade ao álcool, muito menos poluente que a gasolina, faz parte da estratégia de fortalecer o compromisso do Brasil com a agenda ESG, com boas práticas ambientais, sociais e de governança. A transição energética já está acontecendo. O Brasil iniciou 2023 com quase 54% da energia elétrica produzida por hidrelétricas e 13% por eólicas. Dados da Aneel mostram que, do total em operação, mais de 83% das usinas são impulsionadas por fontes consideradas sustentáveis, com baixa emissão de gases do efeito estufa. Vamos acelerar esse processo.

Com a reoneração dos combustíveis, o plano do sr. de diminuir o déficit fiscal de 2023 de 2,3% do PIB para menos de 1% fica mantido?
Trabalhamos com absoluta transparência. Apresentamos o nosso plano de recuperação fiscal em 12 de janeiro. Os objetivos e estratégias foram divulgados e estão mantidos. Queremos reduzir a litigiosidade fiscal e evitar distorções tributárias, com foco na recuperação das contas públicas do País. E isso não depende apenas da tributação dos combustíveis. A Reforma Tributária é essencial e está avançando, em parceria e amplo debate com os parlamentares, com PECs que já estão tramitando na Câmara e no Senado. É essencial porque, além de simplificar o sistema de arrecadação e reduzir desigualdades, pois deixa de cobrar mais de quem ganha menos, vai ampliar o potencial de crescimento do País. E maior crescimento significa mais renda, emprego, respeito aos brasileiros e, consequentemente, maior arrecadação e retorno mais rápido ao equilíbrio das contas públicas.

“A inflação não é um problema apenas do Banco Central, nem só do Ministério da Fazenda ou do governo. É um problema, principalmente, para os brasileiros”

A inflação dá sinais de se manter pressionada, como mostra o último boletim Focus. O sr. acha que existe espaço para o Banco Central abaixar a Selic?
A inflação não é um problema apenas do Banco Central, nem só do Ministério da Fazenda ou do governo. É um problema, principalmente, para os brasileiros. Os juros básicos atuais, de 13,75% ao ano, criam dificuldades para a economia crescer e ampliam o déficit nominal do governo. Mais uma vez, assim como no caso da tributação dos combustíveis, digo que a solução está no equilíbrio e isso está sendo construído. Por parte do Ministério da Fazenda, as medidas fiscais apresentadas até agora estão na direção correta, com capacidade de reduzir as pressões sobre os juros. Isso foi reconhecido, inclusive, pelo BC e pelo mercado.

O sr. prometeu o projeto de nova âncora fiscal até março. Haverá “travas” para aumento de despesas públicas?
O mais importante nesse debate é construir algo com mais eficiência que o teto de gastos, sistema que estava prejudicando o País. O desenho do mecanismo está quase concluído, mas não fechado. Mas, é essencial ressaltar que previsibilidade não é engessamento. São coisas diferentes. No engessamento atual, mesmo que haja uma aceleração do crescimento e da arrecadação, não podemos transformar esse resultado em ações que melhorem o bem-estar da população. Isso tem de acabar.

O sr. pode adiantar alguns detalhes do Desenrola, plano para os endividados? Já tem data de lançamento?
A ideia é tirar a pressão que o endividamento provoca, hoje em dia, sobre as famílias inadimplentes de baixa renda, fator que reduz o consumo e, por consequência, desacelera o crescimento. Temos 70 milhões de CPFs negativados, desses, 50 milhões são de população de zero a dois salários mínimos. É um público que hoje não tem força para, sozinho, reequilibrar as suas contas. Por isso a importância de um programa oficial para ajudar essas famílias e também pequenas empresas a saírem desse endividamento profundo, que paralisa. Foi por isso que já foi encerrada a concessão de crédito consignado no Bolsa Família, outra medida lançada no meio da campanha eleitoral do ano passado, e que acabou minando as finanças de pessoas que já ganham pouco. Os detalhes finais do Desenrola estão sendo discutidos diretamente com o presidente Lula. O programa será lançado dentro de pouco tempo. Os bancos públicos especialmente terão papel fundamental na execução.