Um dia, num shopping em Goiânia, Salma Jô comprou meias arrastão, inspirada em uma imagem vista na conta de Instagram. Era uma fotografia que brincava com o efeito da luz negra em um corpo vestido pela peça de roupa branca. Naquele dia, Macloys Aquino, par dela e companheiro de Carne Doce – banda que o casal mantém em parceria com João Victor Santana (guitarras e sintetizadores), Ricardo Machado (bateria) e Aderson Maia (baixo) – tinha a câmera fotográfica em casa. Comprou lâmpadas de luz negra num mercadinho próximo de casa. Juntos, lá pelas tantas – e algumas doses na cabeça – decidiram realizar, eles próprios, o ensaio que poderia vir a ser a capa do terceiro disco da Carne Doce. A noite seguiu adentro, Salma foi para cama, Mac seguiu para o computador a fim de editar as imagens clicadas ali. “E tinha ficado muito bom, bicho”, diz ele, animado, ao telefone. “Passei a mandar para alguns amigos as imagens. As respostas foram muito espontâneas e autênticas. Acreditamos na força dessas fotos.”

Um dos cliques, afinal, estampa a capa do terceiro álbum do grupo, chamado Tônus, realizado com o auxílio do edital Natura Musical e que ganha vida oficialmente nesta terça, 17, às vésperas da apresentação de estreia, marcada para ocorrer no Centro Cultural São Paulo, na zona sul da cidade, no sábado, 21, às 19h. As fotos daquele ensaio renderam mais do que a capa de Tônus. Cada uma das dez faixas terá uma imagem própria no YouTube e também estarão no encarte da versão em vinil, a ser lançada no segundo semestre, por R$ 80.

E a opção por esse ensaio, tão íntimo de Salma e Mac, faz sentido pelo que o Carne Doce é e, principalmente, pelo que é Tônus, um disco que propõe um olhar para dentro, diferentemente de Princesa, o antecessor, um disco “que tinha um olhar de dentro para fora”, como avalia Mac. São de Salma nove das dez faixas do álbum – ela as assina em parceria com Mac, com João Victor Santana, com a banda toda ou com Fernando Almeida, vocalista do Boogarins e alguém que tem mostrado, com frequência, ser um compositor eficiente, tendo colaborado, recentemente, com Ava Rocha, no disco Trança, além do Carne Doce.

Mas voltemos a Salma, a letrista do grupo e seu processo, que inclui horas sentada de frente para o jardim, com caneta e caderno à mão. Se em Princesa, suas canções iam de encontro ao mundo. Aqui, ela se fecha para olhar para dentro de si. Tônus é conciso dentro de um universo muito particular – que pode ser do casal da banda, que pode ser fictício, que pode ser meu ou seu. O fato é que grande parte dessa nova safra de dez canções se amarram, ali, em torno de um sentimento que, seja alegre, seja triste, se constrói dentro de uma relação.

Não é novidade dentro da obra da Carne Doce, banda que iniciou sua discografia com um álbum que levava seu nome, de 2014, e Princesa, de 2016. São canções que tratam das angústias, das inseguranças e incertezas sentidas dentro de uma relação.

Como em Fetiche, faixa do álbum de estreia. Ou, mesmo, Eu Te Odeio, do segundo disco. “Eu sou feliz quando faço essa abordagem”, avalia Salma. Depois de Princesa ter temas que tratavam mais do mundo lá fora (com posicionamentos e questionamentos políticos e sociais), Tônus naturalmente se fecha dentro de si, em um processo artístico natural de abertura e recolhimento. “Não sou exatamente uma artista militante”, ela diz, e segue: “Parece paradoxal, mas acho que consigo emocionar mais quando olho para dentro. Assim, as pessoas se identificam”.

Foi por acaso, conta Salma, que, por exemplo, vieram Nova Nova e Amor Distrai (Durin), escolhidas como single. “Em uma está tudo bem, na outra não, né?”, diverte-se Salma. A primeira chegou no Dia dos Namorados, mas é o oposto das canções para “mozões” e “mozonas” compartilharem nas redes sociais, entre juras de amor. Densa, criada a partir da inspiração de uma batida de hip-hop, a faixa escorre como a lágrima que surge ao se perceber o fim. A narrativa parte do ponto de vista de quem viu a outra parte seguir em frente – bastante desaconselhável para quem perdeu um par recentemente. A outra, Amor Distrai (Durin), lançada na sequência, trata do amor de carne, eufórico e suado.

O que Tônus mostra, faixa a faixa, é o que há de mais íntimo em uma relação. É direto, sem meias-palavras, metáforas ou interpretações abertas. Está aí o grande acerto do Carne Doce, em seu terceiro álbum. A poesia de Salma é crua e dilacerante nesse sentido. Gemidos são gemidos, sexo é sexo, ciúmes são ciúmes, transa é transa. E, portanto, a dor é a dor. Não há eufemismos. É íntimo, como a feitura da capa do disco.

Veja, por exemplo, o verso de Comida Amarga, faixa que abre o álbum, de Salma e João Victor Santana. “Já não sou mais gostosa / Você goza triste em mim / Acho que é algo que é real / Eu cato as sobras / Dos teus sinais / Eu sou a sobra.” Mac ri, talvez sem graça, quando ouve, do lado de cá da linha, esses versos recitados. Salma, por sua vez, se orgulha. “O Carne Doce tem isso de expor a ferida”, ela diz. “Gosto muito dessas canções que unem vulnerabilidade e força.”

CARNE DOCE

Centro Cultural São Paulo.

Rua Vergueiro 1.000, Liberdade, tel. 3397-4002. Sáb. (21), às 19h. Entrada gratuita.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.