Há pelo menos uma década e meia, o Brasil tem cada vez mais se deparado com a pergunta “há limites para o humor?”, alavancada especialmente pelo boom dos comediantes de stand-up durante esse período, muitos deles por vezes esticando a corda do que é aceitável ou não na comédia.
Recentemente, o humorista Léo Lins foi condenado a oito anos e três meses de prisão em regime fechado, além de uma multa de cerca de R$ 300 mil, sob acusação de ter feito “discursos preconceituosos contra diversos grupos minoritários” em seu espetáculo “Perturbador”, publicado no YouTube.
É em meio a (mais) essa polêmica envolvendo humoristas que chega ao país o livro “Coisa que Não Edifica Nem Destrói” (Tinta-da-China Brasil), do jornalista e humorista português Ricardo Araújo Pereira, convidado da 23ª Flip, em Paraty, no começo de agosto.
O livro é uma adaptação da primeira temporada do podcast homônimo, veiculado entre 2023 e 2024, sucesso de audiência em Portugal. Na obra, Araújo Pereira propõe desmistificar o humor, tirando dele qualquer ar solene que se possa ter a respeito. A partir disso, inclusive, usa como inspiração para seu título uma definição de Machado de Assis, ou melhor, de Brás Cubas, sobre suas próprias memórias póstumas, no livro do Bruxo do Cosme Velho.
“Oba supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado”, diz Brás Cubas no início de suas memórias.
Segundo o próprio Araújo Pereira em sua obra:
“Sei que certos espíritos ficarão desconsolados com a ideia de que o humor possa ser isto, uma coisa que não edifica nem destrói, mas creio que a disposição humorística é avessa a grandes aspirações, e inclina-se a considerar pretensiosa — e até ridícula — a intenção de edificar ou destruir. Tanto o que julga ter a missão de edificar como o que se sente habilitado para destruir estão forçosamente convencidos da sua própria importância. E parecem incapazes de compreender que, entre a edificação e a destruição, há várias outras atitudes possíveis e estimáveis.”
Em tempos em que o humor circula pelas redes sociais em escala industrial, com influencers e artistas de stand-up comedy, e é usado como pano de fundo narrativo de debates políticos, Araújo Pereira experimenta defini-lo. Desde as origens do termo até as discussões mais recentes.
O autor lança mão de uma retórica envolvente e por vezes erudita, com referências a muitos autores clássicos — Homero, Rabelais, Drummond, Shakespeare, Pessoa –, mas sem perder a conexão com a contemporaneidade — chega a discutir, por exemplo, o tapa de Will Smith em Chris Rock durante a cerimônia do Oscar, em 2022, e o anti-herói da Marvel Deadpool.
Ele defende uma espécie de manifesto antissentimentalista. Para ele, é preciso falar com o cérebro e não com o coração. Rir não é o contrário de chorar, afirma, mas sim de estar sério. E rir e chorar talvez sejam manifestações mais próximas do que imaginamos.
Ricardo Araújo Pereira dividirá a mesa “Roçar a língua de Camões” com o tradutor e escritor brasileiro Caetano W. Galindo, mediada pela linguista e escritora Janaisa Viscardi, às 21h do dia 2 de agosto, na Flip.
“Coisa que Não Edifica Nem Destrói”, de Ricardo Araújo Pereira
Tinta-da-China Brasil
240 págs.
R$ 74,90