O projeto da autonomia do Banco Central (BC) nasceu nos anos 1990 diante da necessidade de o governo aperfeiçoar o regime de metas para a inflação. Trinta anos depois, o Senado deu o primeiro passo para transformá-lo em realidade, mas como um tendencioso projeto bolsonarista. Ao contrário do que se espera, a autonomia da instituição ficará bem distante daquilo que foi originalmente concebido. A mobilização pela pauta no Congresso surgiu na esteira da instabilidade da economia. Sem conseguir avançar na pauta econômica, especialmente na reforma tributária, e mediante crises políticas alimentadas pelo Centrão na Câmara – que impediram até agora a instalação da CMO (Comissão de Orçamento), o que pode fazer com que o orçamento só seja votado no próximo ano —, o governo precisava de uma bandeira para acalmar o mercado financeiro. A autonomia do BC acabou tornando-se a menina dos olhos dos governistas.

Waldemir Barreto

“Trata-se de uma questão importante, particularmente em anos eleitorais e quando há, no poder, governos com viés populista, seja de direita, seja de esquerda” Telmário Mota (Pros-RR)

Na prática, a tentativa de deixar a política monetária ao BC, para que ele execute suas atividades essenciais sem sofrer pressões político-partidárias, apresenta contradições. A proposta aprovada pelo Senado, de autoria do senador Plínio Valério (PSDB-AM), amplia a independência da autoridade monetária e barra ingerências do Executivo nas decisões do banco, mas mantém nas mãos do presidente da República a indicação. O projeto estabelece que os mandatos dos membros do BC sejam de quatro anos. Pela proposta, os nomes do presidente do BC e sua diretoria precisam ser aprovados pelos senadores em votação secreta no plenário da Casa. “Teremos o compromisso com a estabilidade da moeda, com o crescimento econômico e a geração de emprego”, defende o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE).

A proposta prevê também alteração nas regras para a demissão de presidente e diretores, que precisará do aval do Senado, em votação secreta. O objetivo é blindar a instituição, mas na prática permite a atuação política que o projeto pretendia combater. “Existia uma percepção de que o governo estava paralisado e este projeto [autonomia do BC] era o menos difícil de passar”, avalia Rafael Schiozer, professor de Finanças da FGV (Fundação Getúlio Vargas). “Não sei o quanto o mercado compra isso porque os investidores não são bobos. Esse projeto era o menos importante de todos.”

Para além de aperfeiçoar o regime de metas da inflação, a autonomia do BC renasceu como uma política para gringo ver, já que o governo necessita reduzir a debandada dos investidores estrangeiros. O Senado atendeu ao governo, mas há dúvidas se o projeto será mantido na Câmara, onde o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ) tem se estranhado com Roberto Campos Neto, presidente do BC. Nomeado por Bolsonaro, Campos Neto já atua para se manter à frente do banco. Sua relação com o Congresso tem se sobressaído, inclusive superando a do ministro da Economia, Paulo Guedes, que não consegue emplacar suas teses. Foi Campos quem cobrou Maia sobre a tramitação das reformas econômicas, ultrapassando sua atuação institucional e invadindo um espaço que seria de Guedes. Recente conversa vazada à imprensa irritou o presidente da Câmara e virou mais um ingrediente na mistura entre política e economia, que reforça a tese de que a autonomia do banco não será tão autônoma assim.

“A atitude do presidente do Banco Central de ter vazado para a imprensa uma conversa particular que tivemos não está à altura de um presidente de Banco de um país sério”, criticou Maia em uma rede social. O presidente do BC negociou o parecer votado no Senado, que foi assinado pelo governista Telmário Mota (Pros-RR). Uma emenda do líder do MDB no Senado, Eduardo Braga (AM), incluiu entre as obrigações da autoridade monetária fomentar o mercado de trabalho. “A crise financeira global deixa claro que a garantia da estabilidade monetária depende igualmente de outros fatores socioeconômicos relevantes, demandando que os bancos centrais ampliem o seu foco de atuação”, defendeu o relator, Telmário Mota.

INIMIZADE Rodrigo Maia: presidente da Câmara criticou suposto vazamento de conversa entre ele e o presidente do Banco Central (Crédito:Mateus Bonomi)

As tratativas entre os aliados governistas e o presidente do BC para a aprovação do projeto no Senado incluíram ainda outra mudança no texto, determinando que a autoridade monetária passe a ser qualificada como “autarquia de natureza especial” e não ficará subordinada a nenhum ministério. Hoje, o BC é ligado ao Ministério da Economia. É uma mudança conveniente para o governo. Dessa forma, o novo cenário de autonomia abriria espaço na Esplanada dos Ministérios para a criação de um novo ministério, acomodando os aliados recentes de Bolsonaro do Centrão.

O poder da moeda

Nos seus fundamentos, o Banco Central tem como objetivos principais garantir o poder de compra da moeda e assegurar a estabilidade do sistema financeiro. O projeto aprovado no Senado mantém o controle da inflação como sua atribuição central. Essa é uma das bandeiras que o governo quer sustentar ao mercado financeiro, mas a tentativa não é novidade. Quando a autonomia do Banco Central começou a ganhar contornos no Congresso, em 1991, o índice da inflação atingia a marca exorbitante de 480,2% ao ano. Para se ter uma ideia, esse indicador atingiu 4,31% em 2019, e mesmo assim o consumidor já sentiu o peso das compras no bolso, especialmente em relação aos alimentos. No início do ano, a carne e o feijão foram os vilões da inflação, mas coube ao coronavírus receber o crédito em 2020, já que a inflação volta a crescer — ainda que em patamares menos explosivos. A autonomia do BC é a tentativa de acalmar os ânimos e jogar para a pandemia a culpa de uma política econômica que não consegue entrar nos trilhos. A questão é saber até que ponto o mercado irá aceitar essa articulação. Aos especialistas, os cenários não parecem tão promissores quanto os aliados do governo tentar demonstrar. “Claro que a formalização da autonomia do BC é boa, mas não acho que vai mudar muito a percepção dos investidores em relação ao Brasil. Esse projeto é uma tentativa de passar um sinal positivo num cenário nada positivo”, afirma Schiozer, da FGV. Ou seja, um Banco Central independente — mas só para inglês ver.