Autonomia do paciente: até onde vai o direito de recusar o tratamento

Em casos de doenças graves, recusar ou interromper um tratamento envolve limites legais, decisões médicas e conflitos familiares, mas a palavra final é do paciente

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Humberto Carrão no papel de Afonso Roitman em 'Vale Tudo' Foto: Reprodução/montagem web

Recentemente, Afonso Roitman (Humberto Carrão) cogitou recusar o tratamento contra um câncer raro na novela Vale Tudo. O personagem vivido por Humberto Carrão só mudou de ideia após descobrir que seria pai. O gesto jogou luz sobre uma realidade comum, mas pouco falada fora dos consultórios: o direito de recusar um tratamento, mesmo quando ele pode prolongar a vida.

Para a oncologista Marina Sahade, do Centro de Oncologia do Hospital Sírio-Libanês, respeitar a decisão do paciente passa por entender o contexto. “É importante separar dois cenários: o da doença inicial, que vai ser tratada com intenção de cura, e o da doença avançada e metastática, cujo tratamento visa o controle. No curativo, é mais difícil ter opções tão abertas. Já quando é controlado, as possibilidades são muito mais negociáveis, desde dose até periodicidade”, explica.

Sahade destaca que o vínculo com o paciente e sua rede de apoio é determinante: “para respeitar a autonomia, é fundamental ouvir. Entender valores, rotina, o que é importante para aquela pessoa. Muitas vezes podemos oferecer a opção de um tratamento oral, menos frequente ou menos tóxico. E o que mais pesa é garantir que o paciente entenda o que cada decisão significa”, pontua.

Para ela, o ponto mais sensível é equilibrar a melhor conduta técnica com a escolha individual. O mais importante, portanto, é ter certeza de que o paciente entendeu as implicações de recusar algo. “É frustrante quando a doença avança e o paciente sofre mais da própria doença do que do efeito colateral do tratamento que recusou”, explica. Por isso, a especialista costuma orientar adaptações no percurso. “Em geral, começamos uma terapia e vamos ajustando conforme a tolerância. Para a maior parte dos tratamentos, os efeitos são reversíveis quando o tratamento é interrompido”, acrescenta.

Situações de conflito entre paciente e família também são parte do cotidiano. Quando há vínculo e as conversas são constantes, fica mais fácil ter certeza de que as decisões foram compreendidas. Seja como for, trata-se de um processo que exige acolhimento de todos os lados.

O que diz a lei

Na legislação brasileira, a recusa de tratamento é um direito. Segundo a advogada Lisiane Ribeiro, CEO do escritório Damas e Lima, se o paciente estiver consciente e capaz de entender os riscos, sua decisão deve ser respeitada, mesmo que isso implique risco de morte. “O médico deve adotar cautelas: informar claramente os riscos, registrar no prontuário e, quando necessário, formalizar em um termo específico. O Conselho Federal de Medicina reconhece esse direito, desde que o paciente tenha total entendimento do que está recusando.”

Quando se trata de cuidados paliativos, que não buscam cura, mas qualidade de vida, o processo é mais complexo. “A recusa é juridicamente possível, mas há uma questão ética importante. O dever do médico é minimizar a dor e o desconforto. Mesmo assim, a autonomia do paciente prevalece”, explica.

Diretivas antecipadas de vontade podem ajudar a evitar conflitos, principalmente quando o paciente perde a capacidade de decidir. “Elas permitem manifestar, por escrito, que tipo de cuidado a pessoa quer ou não quer receber. São especialmente comuns na oncologia, quando o paciente quer evitar medidas fúteis”, diz a advogada.

Quando há discordância entre família e paciente, a lei é clara: prevalece a vontade de quem está doente, desde que esteja lúcido. “Se o paciente não tiver condições, aí sim a família ou um representante legal decide, sempre buscando o melhor interesse e, quando possível, seguindo o que foi registrado em vida.”

No fim, para a oncologista Marina Sahade, respeitar uma recusa não significa abandonar o paciente. “O corpo foi feito para viver. O médico precisa garantir que cada etapa faça sentido para aquela pessoa. Muitas vezes, parar um tratamento que não vai mais trazer benefício real é proteger o paciente do desgaste. É continuar cuidando de outro jeito.” Para quem enfrenta um câncer avançado ou uma doença grave, por exemplo, a autonomia pode ser o último fio de controle. Em todo caso, o cuidado tem de ser adaptado, com foco na dignidade e humanidade do paciente até o fim.