Nenhum biógrafo poderia fazer algo melhor do que o próprio Miles Davis fez por sua história ao relatá-la ao poeta, jornalista e professor Quincy Troupe a partir de 1985. Claro, olhares de fora são sempre mais impetuosos com os deslizes alheios e biógrafos certamente se deteriam com mais afinco sobre o furacão Betty Davis traindo Miles com Jimi Hendrix (uau!), e com muito mais empenho a respeito da gravação de Kind Of Blue, o álbum de jazz relatado como o mais vendido da história que o trompetista minimiza. Mas isso é pouco de deficiência perto do muito de choque, êxtase, tensão, vala, psicoterapia, fúria, violência, riso, ódio, traumas, racismo e aulas de jazz reveladas não por didatismo, mas vivência. Miles Davis só não está por inteiro porque, ao se revelar com tanta impetuosidade, fica claro que não caberia em 543 páginas. Nem em 1 milhão.

Quincy Troupe tem hoje 82 anos e o fato de ser negro pesou no instante em que Miles decidiu abrir o quarto de sua alma a alguém. “Miles e eu somos da mesma região. Crescemos comendo o mesmo tipo de comida, amamos música, arte, roupas estilosas, basquete, futebol americano e boxe. Falamos a mesma língua e temos visões de mundo parecidas”, escreveu o autor no posfácio, sem esconder o efeito reflexo na sedução de um biografado que só odiava uma espécie mais do que os críticos de música em geral: os críticos de música brancos. As falas de Miles chegam orais, sem ajustes de edição nem buscas literárias. Nada. Na nova edição de Miles Davis, a Autobiografia, que a editora Belas Letras lança agora no Brasil, é Miles falando o tempo todo, com todos os palavrões que isso implica. “Se tivéssemos higienizado a linguagem do livro, a voz de Miles não soaria tão autêntica”, escreveu Troupe.

Filho do dentista Miles Dewey Davis II, nascido a 26 de maio de 1926 em uma cidade à beira do Rio Mississippi chamada Alton, Miles III veio de uma família abastada e dona de terras. Seu pai pagou os estudos e apoiou sua escolha pela música, mas o fato de Miles não ter tido pai nem avô trabalhando no plantio do algodão no Sul não impediu que sua vida fosse marcada por um sentimento de ódio ao ódio que os brancos sentiam pelos negros. Um tiro que ricocheteava e atingia o primeiro branco à sua frente.

“Detesto como os brancos sempre tentam levar crédito por algo que depois ‘eles’ descobrem… Depois que o bebop se tornou febre, os críticos de música brancos tentaram agir como se o tivessem descoberto – e a nós – na Rua 52”, diz, sobre a linguagem do jazz que surge nos anos 1940 com Dizzy Gillespie e Charlie Parker.