O diretor Stanley Kubrick era tão perfeccionista que considerava o adjetivo “perfeccionista” um insulto. “Existe uma tendência jornalística a utilizar essa palavra para me agredir”, afirmou. O cineasta americano nascido no Bronx, em Nova York, nunca teve boas relações com a imprensa, não porque menosprezava o trabalho dos jornalistas, mas, sim, porque não gostava de ser entrevistado. Como artista ciente da complexidade de sua obra, não tinha vontade de ter de explicar seus filmes pois acreditava que eles deveriam falar por si. “Não gosto de entrevistas porque me sinto obrigado a fazer um resumo espirituoso e brilhante das intenções do filme. Eu não sei o que me levou a fazer meus filmes”, explicou. “É algo indefinido, subjetivo, como perguntar por que você acha uma mulher atraente ou por que você se casou com sua esposa.”

“Kubrick morava no interior com a família. Ele fazia todo o trabalho em casa, não precisava se deslocar para nada” – Michael Ciment, sobre a suposta reclusão do cineasta Stanley Kubrick (Crédito:Divulgação)

Essas e outras declarações, raramente captadas em áudio e nunca pelas câmeras, constituem a base do documentário francês “Kubrick por Kubrick”, de Gregory Monro, um dos destaques da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que esse ano está sendo exibida online. Fruto de entrevistas feitas pelo crítico Michel Ciment ao longo de uma década, as reflexões de Kubrick revelam um artista firme, sereno, com domínio total do seu universo. O filme também reúne depoimentos de atores como Malcolm McDowell, protagonista de “Laranja Mecânica”, Peter Sellers, de “Dr. Fantástico”, Jack Nicholson, de “O Iluminado” e Tom Cruise, de “De Olhos Bem Fechados”. Os astros são unânimes em reverenciar Kubrick como um dos maiores cineastas da história, mas confirmam, sim, o seu caráter obcecado pela perfeição. Em filmes como “Barry Lyndon”, iluminado inteiramente a luz de velas, o diretor chegou a fazer 152 tomadas da mesma cena. Esse exagero criava revolta entre a equipe? Claro que sim. O privilégio de trabalhar em um filme de Stanley Kubrick, no entanto, superava qualquer estresse.

 

Vida no interior

O diretor também não gostava do termo “recluso”, outra forma em que era geralmente descrito pela imprensa. “Stanley não era nada do que os jornais escreviam sobre ele”, garante sua esposa, a artista plástica Christiane Kubrick. “Ele dizia: ‘como posso me defender? Devo escrever um artigo ‘querido público, sou encantador?’ Ele não sabia como se colocar.” A suposta reclusão de Kubrick também é abordada no filme, com uma explicação muito menos glamourosa do que a lenda insinuava. Como ele era realmente obcecado pelo controle de todas as esferas relacionadas às suas obras, Kubrick montou em sua casa, uma construção do século 18 localizada a 48 quilômetros de Londres, um estúdio completo de edição de som e imagens. Ali ele podia trabalhar no seu ritmo e da maneira que sentia mais confortável, sem ter de se deslocar.

Ao contrário de outros diretores, que mesmo após o sucesso tinham de obedecer aos cronogramas dos grandes estúdios, Kubrick não aceitava pressões e fazia tudo do seu jeito. “Ele mora no interior, vive com a esposa, seus cães e gatos. Tem três filhas. Passa a vida trabalhando, jogando xadrez e lendo”, lembra Michael Ciment. “Constrói os sets de filmagens a 15 km de onde mora, toda a montagem é feita em sua casa, ele não precisa sair para fazer nada. É só ir da sala de montagem para o quarto. Seleciona atores a partir de fitas de vídeo e controla o mundo a partir de sua casa.” As entrevistas completas de Michel Ciment foram lançadas no Brasil no livro “Kubrick”, da editora Ubu.

O filme traz ainda pensamentos profundos sobre temas como a existência humana e a inteligência artificial, assunto que o visionário diretor abordou com pioneirismo em 1968, no clássico “2001: Uma Odisséia no Espaço”. “Os problemas do mundo parecem ser problemas apenas porque o homem não tem a inteligência para solucionar a armadilha em que nos encontramos”, afirmou. Sobre o ser humano, foi ainda mais implacável: “Se você acreditar que o homem é fundamentalmente bom, terá uma grande decepção.” Palavras de um gênio.


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Ai Weiwei, o inimigo do estado

CAOS “Coronation”, do artista Ai Weiwei: exército de médicos e caos na cidade chinesa de Wuhan, berço da pandemia do coronavírus (Crédito:Reprodução e Divulgação)

“Coronation”, de Ai Weiwei, é um filme estranho. Está mais para “documento” do que para “documentário”, no sentido de que é uma colagem de imagens reveladoras sobre fatos históricos. Não há uma história ou sequer uma narrativa sequencial. A obra do artista chinês mostra cenas filmadas com celular no início de 2020 por cidadãos comuns de Wuhan, a partir de onde o coronavírus se espalhou para o mundo. A ausência de música, o inverno rigoroso e o lockdown da cidade tornam “Coronation” um filme de terror. As cenas evidenciam o ambiente de caos e descaso do governo chinês, que escondeu da população o perigo real da pandemia, mas também a rapidez e disciplina na guerra para combatê-la: a construção do gigantesco hospital de campanha; o exército de 40 mil médicos e enfermeiros chegando a Wuhan em ônibus vindos de todo o país; a ignorância da população sobre o que estava acontecendo. A crítica social em forma de filme não é novidade na obra do dissidente Ai Weiwei, mas ela não fica restrita à China. Seu outro documentário exibido na Mostra, “Vivos”, aborda o episódio em que um grupo de estudantes mexicanos é atacado por forças policiais e outros agressores mascarados. Seis pessoas foram mortas, dezenas ficaram feridas e os 43 estudantes desapareceram. Não importa o país, Ai Weiwei está sempre com sua câmera apontada para as verdades que as autoridades tentam esconder.