Augusto Aras é um revolucionário. Ou talvez um reacionário – há espaço para dúvida. O certo é que ele não ocupa o cargo de procurador geral da República para deixar as coisas como as encontrou. Esgrimindo sua tese sobre a “unidade do Ministério Público”, ele pode realizar a mais profunda mudança na instituição desde que ela ganhou suas feições atuais, com a Constituição de 1988. Surpreendentemente, o assunto não vem provocando o debate necessário.

Há uma discussão em curso, mas ela está enviesada.

Começou com o pedido de Aras para ter acesso aos bancos de dados da Lava Jato em Curitiba. Os procuradores se negaram a compartilhar as informações. Aras, então, levou o caso ao Supremo Tribunal Federal. O ministro Dias Toffoli atendeu o seu pedido, mas a decisão é liminar e ainda terá de passar pelo plenário da corte.

O que parece estar em jogo é o comportamento desafiador dos procuradores da Lava Jato.

Na verdade, vai além disso.

A sentença de Toffoli diz respeito sobretudo aos poderes da PGR.

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Segundo Toffoli, o Ministério Público Federal é uma “instituição una, nacional e de essência indivisível, e como tal, conta com órgão central”. Obviamente, esse órgão central é a PGR, à qual Toffoli atribui autoridade hierárquica para requisitar informações de promotores e forças tarefa.

Se a maioria dos ministros do STF seguir nessa mesma linha, a PGR poderá sair do julgamento muitíssimo fortalecida. Conquistará uma autoridade de que até hoje não desfrutou para influir nos rumos de investigações.

Ajuda lembrar um pouco da história do MP. Ele ganhou contornos institucionais com a Constituição de 1934 e, pelas cinco décadas seguintes, permaneceu com o mesmo status: um órgão subordinado ao Poder Executivo.

Tudo mudou em 1988. A nova Constituição o tornou independente de qualquer dos três poderes. Deu-lhe um escopo de atuação que, salvo engano, não tem paralelos no mundo. Como guardião da “ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, ele deixou de atuar apenas em áreas tradicionais como o processo penal ou a tutela de incapazes. Ganhou protagonismo em temas como a fiscalização do poder público, o direito ambiental e o direito do consumidor.

Mais importante, cada promotor ou procurador recebeu autonomia e independência funcional. Isso significa que o integrante do Ministério Público não tem chefes e não recebe ordens de ninguém quando se trata de iniciar ou não investigações, propor ou não ações e recursos.

É como se ele fosse o Pequeno Príncipe em seu planetinha.

À PGR caberia um papel quase que exclusivamente administrativo.

Não há dúvida que esse foi o desenho institucional pretendido pelos constituintes de 88. Tanto assim que nos últimos 30 anos o MP se expandiu e vicejou, a ponto de levantar indagações sobre a necessidade de cortar suas asas.

As críticas à Lava Jato – eles se excederam, acham que podem tudo, viraram um partido político etc. – na verdade são capítulo de um gênero maior, composto pelas críticas a um MP que teria perdido os freios.

Contribuem para o anedotário gestores de todos os níveis de governo que reclamam que promotores se imiscuem em decisões administrativas sem ter as informações necessárias para tanto, empreendedores que veem obras paralisadas durante anos por questões fundiárias ou ambientais, empresas que acusam intervenção indevida em relações econômicas ou trabalhistas.

Um episódio do começo deste ano ilustra de forma até caricatural o problema. Em janeiro, a  Corregedoria Nacional do Ministério Público editou uma portaria orientando os membros da instituição a se abster de “praticar atos privativos de autoridade judiciária”, como expedir mandados de soltura de presos. Traduzindo, a corregedoria achou por bem lembrar os promotores que eles não podem “roubar” as atribuições de juízes. .


Aras acredita que para repor o MP nos trilhos é preciso ampliar os poderes da PGR e reforçar a hierarquia na instituição.

Seria interessante saber que papel essa crença desempenhou na sua nomeação pelo presidente Jair Bolsonaro. Aras não a ocultou de ninguém antes e depois da sua posse na PGR, em setembro do ano passado, falando sobre “excessos do MP” e sobre a “unidade da instituição” sempre que lhe perguntaram.

A ação que está no Supremo mostra que o procurador-geral não ficou só no papo.

Recentemente, ele também procurou restringir a atuação de promotores de todo o país durante a pandemia, editando uma recomendação para que não questionem as decisões de gestores públicos em matérias como abertura e fechamento de comércio ou adoção de protocolos médicos. Esse tipo de intervenção da PGR é novidade.

Nada contra discutir limites para o Ministério Público. Muito pelo contrário. Mas, pela relevância do assunto, a discussão deveria acontecer de maneira mais aberta e organizada.

A solução é mesmo concentrar poderes nas mãos de um procurador-geral nomeado pelo presidente? Isso poderia submeter o MP ao Executivo, como acontecia antes de 1988?

Seria aconselhável criar novas leis? Ou o melhor caminho é mesmo deixar que o Supremo estabeleça um novo padrão para o funcionamento do MP reinterpretando a Constituição? Não tem resposta fácil nessa história.


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