Ele é o cara. Kleber Cavalcante Gomes, mais conhecido como Criolo, antes Criolo Doido, é cantor, compositor, rapper e professor. Havia feito videoclipes e participações pequenas em filmes. Agora se pode dizer que é ator, e dos bons. Andrucha Waddington deu-lhe um grande papel em O Juízo, o escravo Couraça. Um papel para o qual, diz a roteirista Fernanda Torres, Criolo traz sua icônica presença de porta-voz dos excluídos brasileiros. E isso tem tudo a ver com o personagem.

Como o Andrucha o convenceu a fazer o filme?

Antes temos de falar sobre como ele chegou à conclusão que poderia ser eu. Ele estava voltando para o Rio depois de haver encontrado as locação, a fazenda. Diz que ligou o rádio do carro e era eu cantando. De cara, pensou: “Pode ser o Criolo”. Ele ligou, eu estava no Rio. Marcamos de conversar no hotel. Ficamos quatro horas conversando. Deu medo, mas topei. E já que estava dentro, o desafio era fazer bem. Foi todo mundo pegando junto naquelas leituras, naquele set, uma coisa linda. No começo, estava acanhado. Imagina – com o Lima (Duarte), a Carol (Castro), o Felipe (Camargo). A dona Fernanda (Montenegro) iluminando o caminho. Sabe uma coisa? Fui deixando de ser acanhado. Fiquei felizão de estar ali.

O escravo que vem cobrar uma dívida do tempo do colonialismo é sob medida para você?

De cara, quando Andrucha falou o que era pintou o entendimento. Isso, a natureza desse personagem, eu entendo. Isso, eu posso fazer. Tem muito a ver com a música, com a poesia que eu faço. Canto o horror, denuncio a violência institucionalizada e a desigualdade social como tragédias brasileiras, mas canto com alegria, para fazer o público feliz.

De onde vem essa poesia tão contundente, tão forte?

Da minha mãe, cara. Minha mãe é pequenininha, benzedeira lá nas bordas da quebrada. A vida toda vi minha mãe ajudar as pessoas, que chegavam com seus problemas, pedindo uma reza. Ela pegava sua Bíblia e ia lá benzer. Minha mãe enfrentou muito homem violento, que batia em mulher. Homens possessos. Podia não ter cultura, no sentido acadêmico, mas sempre soube as palavras. Demorei muito para mostrar minhas letras, e para mostrar para ela, porque tinha medo de não ter a sabedoria da minha mãe. E, cara, eu comecei muito por baixo. Venho da quebrada, p…, onde neguinho toma pau e morre só por estar ali. Então ter essas oportunidades é do c…. Gente como eu, que ainda vive como eu vivi, se mira e vê que tudo é possível. Acorda, c….

Com seu canto, você fala muito em saúde e educação. Educar-se para a vida, como você se educou para sua música e agora para ser ator. É o que importa?

Talvez não seja tudo, mas é muito importante. Já vivi no ódio, mas é uma pegada que já superei. Não quero viver assim, odiando, dividindo. Quero somar. Olha esse horror que foi a chacina em Paraisópolis. O povo querendo se divertir, do jeito que pode, querendo ser feliz, e os homens chegam barbarizando. E não é a exceção, é a regra. Todo dia há uma juventude negra, e pobre, e excluída que paga o preço da injustiça, de não ser nada para quem tem tudo. Não existem dois Brasis. Temos de lutar contra isso, contra essa mentalidade.

O que atuar trouxe para você?

É um campo novo, e eu gosto. Você está ali de corpo presente, mas encarnando uma outra coisa. No início, como eu disse, fiquei acanhado. Vou dar conta? Mas depois que você relaxa, é f… Atuar é uma forma de entender os outros e descobrirmos a nós mesmos.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.