Sou obrigado a concordar com os políticos que dão apoio a Jair Bolsonaro. O vídeo da famigerada reunião ministerial de 22 de abril, liberado nesta sexta-feira pelo STF, não foi uma bala de prata contra o presidente. Foi mais um atropelamento com fratura exposta, que pode, como dizem os médicos, “evoluir para o óbito”.

Para ser bala de prata, o vídeo teria de flagrar Bolsonaro, concretamente e para além de qualquer dúvida, procurando desviar a PF da sua missão institucional. Só isso obrigaria o procurador geral da República Augusto Aras a denunciar o presidente. Como se sabe, Aras está doidinho para arquivar o inquérito.

Do ponto de vista jurídico, mostrar que Bolsonaro fez pressão para trocar o superintendente da PF no Rio de Janeiro não leva a lugar nenhum. É algo que está dentro de suas prerrogativas.

Foi pura inépcia do presidente se enredar numa história capenga a respeito desse assunto. Ele disse que, ao reclamar que não conseguia fazer trocas “na segurança no Rio”, se referia à equipe que cuida da sua proteção pessoal, não à PF. Sua trinca de ministros militares — Augusto Heleno, Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos — repetiu a história em depoimentos à Justiça. Mas a versão foi rapidamente desmentida. Em março, a equipe de segurança do presidente no Rio de Janeiro teve trocas importantes. As mudanças não foram para punir, mas para premiar o comando com promoções. Em outras palavras, aquele não era um foco de dificuldades ou insatisfação. A lorota desnecessária pode cobrar um preço mais adiante.

No vídeo, Bolsonaro também exige receber relatórios de inteligência mais detalhados. Reclama de todo o aparato de informações, incluindo Abin, Gabinete de Segurança Institucional, PF. Isso tampouco é crime. A PF de fato tem o dever de abastecer a Presidência com informações.

Repita-se: o que importa é provar que a mudança de superintendente no Rio era um modo de transformar a PF numa extensão dos interesses políticos ou pessoais de Bolsonaro.

Essa prova não aparece no vídeo de maneira cabal. Aliás, o vídeo até enfraquece um dos indícios de que Bolsonaro queria uma PF para chamar de sua. Antes que fosse liberado, especulava-se que a frase “não vou esperar &@%*$! minha família toda… porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha” dizia respeito aos filhos Flávio e Carlos Bolsonaro, e à possibilidade de que sejam atingidos por investigações sobre rachadinhas e fake news criminosas. Mas os parentes mencionados logo antes dessa exclamação são os irmãos do presidente. Bolsonaro reclama que eles são perseguidos pela imprensa.

Curiosamente, uma chance para que Augusto Aras não engavete o inquérito surgiu no começo da noite, Bolsonaro resolveu falar com a imprensa. Queria cantar vitória, bradando que o vídeo é “um traque”, “um furo n’água”. Acabou dando um tiro pé.

Ele mencionou uma trama que teria sido desbaratada por amigos policiais. Disse que agentes do país todo lhe passam informações de modo informal, explicando que essa é a misteriosa “segurança particular” que mencionada no vídeo — e que seria mais eficiente que a dos órgãos de governo.

Na trama, a casa de seu filho Carlos seria alvo de uma busca judicial. Provas falsas seriam plantadas no local e o presidente se veria refém de chantagens. Bolsonaro revelou que depois desse episódio chamou Sérgio Moro às falas. Pediu que ele o protegesse. “Ele tem o dever de me defender”, disse.

Isso sim é uma amostra contundente do desejo de instrumentalizar a PF de forma indevida. O dever de proteger o presidente é do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), comandado pelo general Augusto Heleno. Não é do ministro da Justiça, seja ele Moro ou qualquer outro. Trata-se de uma novidade que pode dar sobrevida à investigação, juntamente com a história esquisita da segurança particular.

Quer dizer então que o vídeo da reunião ministerial é uma bobagem? Um traque? Nada disso. Se as consequências jurídicas imediatas podem não ser as que se imaginava, as consequências políticas não são nada boas.

Primeiro, um parêntese. Quando se assiste o vídeo, fica claro que Bolsonaro estava fervendo de raiva. Queria exigir dos ministros mais combatividade, mais ação política. Moro era o principal alvo de irritação. Sem dúvida, é no ex-juiz que Bolsonaro está pensando quando cobra que auxiliares preocupados com a própria imagem “tirem a cabeça da toca” para defendê-lo na imprensa. “Tem que fazer a sua parte!”, diz o presidente. Também é para Moro que ele olha quando avisa que vai intervir em qualquer ministério se achar necessário. Ele se volta para o ministro da Justiça no exato momento em que pronuncia a palavra “intervir”.

Sobre o restante do vídeo, a baixaria na fala do presidente e de seus ministros é deplorável. Pior ainda, não há lucidez nenhuma por baixo do jorro de palavrões. Numa reunião de quase duas horas, pouco se fala de governar, e muito tempo se gasta com delírios e rancores. Uma inacreditável confusão entre as restrições à locomoção adotadas por todas as democracias do mundo para combater a pandemia do coronavírus e um desejo diabólico de escravizar as pessoas atravessa a conversa. Daí derivam considerações sobre a necessidade de armar os cidadãos para evitar o surgimento de ditaduras (Bolsonaro), mandar para a cadeia os “bandidos do STF” (Abraham Weintraub) e processar e prender governadores e prefeitos que recomendam o isolamento social (Damares Alves).

O núcleo duro do bolsonarismo gosta de ouvir essa música. Mas ela deve causar um enorme desalento naqueles cidadãos que votaram em Bolsonaro, mas não o apoiam sem reservas. O vídeo deve acirrar ainda mais os ânimos no Brasil. A esperança de que o governo possa pôr o país nos trilhos vai ser ainda mais corroída.

Acredito que a investigação sobre a tentativa do presidente de interferir politicamente na PF será arquivada em breve por Augusto Aras. Mas não há tranquilidade política no horizonte. E o governo está no chão, atropelado por suas próprias palavras.