Quando a neuropediatra Clarisse Pereira Dias Drumond Fortes se formou em medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), referência em doenças neuromusculares no país, há 22 anos, não havia muita esperança para as crianças que nasciam com atrofia muscular espinhal 5q (mais conhecidas pela sigla AME). “A expectativa de vida era de 1 ou 2 anos, no máximo”, recorda-se a médica. A gravidade do quadro pode ser compreendida ao entender o que está por trás da doença.
A AME é uma condição genética neuromuscular progressiva, cuja origem vem de mutações do gene SMN1, responsável pela produção de uma proteína essencial (SMN) para os neurônios motores. Quando essa proteína não é “fabricada” em quantidade suficiente pelo organismo, os neurônios da medula espinhal se degeneram, o que causa fraqueza e atrofia muscular. É uma doença rara, que afeta 1 em cada 10 mil nascidos vivos no país, e se classifica em quatro tipos: de 1 a 4, conforme a idade de início e a gravidade dos sintomas. Os portadores da condição têm dificuldade de sustentar a cabeça, sentar, andar, engolir e até mesmo de respirar.
Foi somente em 2016 que este cenário começou a mudar, com a chegada dos primeiros medicamentos específicos para atrofia muscular espinhal (AME) — pois até então, só existiam cuidados de suporte, como fisioterapia, ventilação assistida e acompanhamento nutricional. Naquele ano, o FDA, agência regulatória dos Estados Unidos, aprovou o nusinersena (comercialmente chamado de Spinraza), que estimula a produção da proteína SMN a partir do gene SMN2. Em 2019, o mesmo órgão aprovou o onasemnogene abeparvovec (Zolgensma), uma terapia gênica aplicada em dose única. E, em 2020, chegou o risdiplam (Evrysdi), primeiro medicamento oral para AME. Aprovado no mesmo ano nos Estados Unidos e na Europa, ele também age modulando o gene SMN2.
Por aqui, esses tratamentos também foram aprovados e incorporados gradualmente, entre 2017 e 2022. Isso não significa, porém, que são de fácil acesso na rede pública ou particular, especialmente por seu alto custo. O medicamento Zolgensma, por exemplo, uma das terapias gênicas mais caras do mundo, com custo médio de R$ 7 milhões, passou a ser ofertado no SUS somente em março de 2025.
Recentemente, o país deu um passo importante no acesso ao tratamento da AME. A Fiocruz e as empresas Hypera Pharma e Aurisco Pharmaceutical assinaram uma parceria voltada ao desenvolvimento e a fabricação nacional do medicamento nusinersena, um dos tratamentos usados no enfrentamento da AME. Além de gerar economia aos cofres públicos, a parceria se destaca por incorporar uma plataforma tecnológica inédita no país, com potencial para desenvolver também medicamentos para outras doenças.
A luta pelo diagnóstico precoce via Teste do Pezinho
A AME costuma se manifestar ainda nos primeiros seis meses de vida, principalmente as mais graves, do tipo 1. “São bebês que apresentam uma respiração diferente. Por causa da fraqueza no tórax, elas tendem a respirar pelo abdômen, e assim a barriga fica com a aparência estufada. Essa dificuldade respiratória também faz com que sejam levadas ao pronto-socorro com frequência. Além disso, eles se movimentam pouco e são mais molinhos (o que também é conhecido por hipotonia)”, exemplifica a neuropediatra Clarisse Fortes. “Por outro lado, são muito espertos”, completa. No entanto, os sintomas podem passar despercebidos até mesmo por médicos nesse intervalo, de acordo com a especialista.
A pequena Alice, por exemplo, foi diagnosticada com AME aos 4 meses. A pediatra não identificou os primeiros sinais, como a respiração acelerada e a hipotonia. Por conta dos problemas para respirar e, por consequência, engolir, ela também engasgava muito e comia pouco, estava sempre com o peso abaixo do esperado. Como suspeitaram que havia algo errado, os pais pediram um encaminhamento para um neurologista. “Assim que o diagnóstico foi confirmado, iniciamos todos os protocolos. O primeiro foi começar o tratamento com ridisplan, que foi liberado pela Unidade Farmacêutica de Alto Custo (do SUS) e, em seguida, a fisioterapia motora e respiratória, além das sessões de fonoaudiologia e do uso do respirador”, conta a mãe, a dona de casa Renata Pereira Cardoso, de 36 anos.
Casos de confusão e atraso no diagnóstico são comuns, como reforça a fisioterapeuta respiratória Fernanda Batista, vice-presidente da Associação Amigos da Atrofia Muscular Espinhal (AAME). Por essa razão, a ONG luta para que a AME seja contemplada em todo o país no Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), conhecido como Teste do Pezinho. Como o exame é realizado gratuitamente nos primeiros dias após o nascimento, ainda na maternidade, a doença seria identificada e tratada antes mesmo dos sintomas se manifestarem. “Embora a inclusão esteja prevista na lei há quatro anos, ela ainda não foi implementada. Exceto em alguns locais, como o estado de Minas Gerais, e as cidades de Brasília e São Paulo”, lamenta a vice-presidente da AAME. Por enquanto, na maioria dos estados, a AME só faz parte do chamado Teste do Pezinho Ampliado, que é oferecido na rede particular.
A implementação das leis que garantem aos pacientes os tratamentos disponíveis também é uma das bandeiras da AAME. De acordo com a vice-presidente da ONG, o acesso aos medicamentos, tanto na rede privada quanto pública, ainda hoje ocorre de maneira judicial na maioria dos casos. “As políticas públicas devem ser aplicadas de maneira irrestrita. Pacientes não podem depender de ‘vaquinhas’ para sobreviver”, argumenta.
O tratamento da AME vai além dos medicamentos
Os desafios, porém, não param aí. Além do direito ao diagnóstico e ao tratamento medicamentoso, as famílias dos pacientes com AME têm de lutar também pelo acesso aos cuidados de suporte. Conforme explica Fernanda Batista, para ter qualidade de vida, eles precisam de atendimento multidisciplinar, com fisioterapia, fonoaudiologia, hidroterapia e terapia ocupacional (para adquirir independência no dia a dia).
O paciente também pode precisar de ferramentas como respiradores (especialmente antes do início do tratamento medicamentoso), órteses (para alinhamento e suporte) e cadeiras de roda.
“Só a compra da máscara do respirador pode comprometer 90% do BPC (Benefício de Prestação Continuada), do qual dependem muitas famílias”, exemplifica Fernanda.
Embora o tratamento tenha avançado nas últimas décadas, o que aumentou a sobrevida dos pacientes, a atrofia muscular espinhal não tem cura. Por ter sido testemunha do que ela chama de “revolução”, contudo, a neuropediatra Clarisse Fortes é otimista. “Quanto antes for realizado o diagnóstico, maiores são as chances da criança sobreviver com qualidade de vida. Se antes elas viviam acamadas, hoje estão enfrentando desafios que não imaginávamos, como ter autonomia, estudar e trabalhar”, conta a médica.
Há grandes chances de Alice fazer parte desse grupo no futuro. Com apenas 2 anos, a menina já rompeu diversas barreiras. Segundo a mãe, Alice tem um desenvolvimento considerado surpreendente pelos médicos e demais profissionais que a acompanham. “Minha filha se expressa com nitidez na fala, movimenta os membros inferiores e superiores, se alimenta via oral. Ela é um verdadeiro milagre”, celebra Renata.