Há quase 150 anos, Escócia e Inglaterra fizeram a primeira partida oficial entre dois países. Era 30 de novembro de 1872, dia de Santo André, padroeiro dos escoceses. Mesmo que a crônica local tenha publicado elogios à partida, ela terminou em um morno 0 a 0 em um dia cinzento em Glasgow. O que não mudou, um século e meio depois, foi a força que as camisas de seleções exercem sobre o imaginário, as superstições e elas continuam fazendo seu papel de um símbolo que representa as nações, especialmente em ano de Copa do Mundo.

Essa e outras histórias inspiraram cinco jornalistas argentinos a mergulhar em uma pesquisa conjunta para fazer o maior levantamento já feito sobre camisas de seleções. O trabalho, iniciado em 2017, após terem levantado as 1.200 versões que formam o futebol da Argentina, chega em livro ao mercado brasileiro com o nome de Atlas Mundial de Camisas. Dois dos autores, Ernesto Molinero e Pablo Aro, conversaram com exclusividade com o Estadão para contar mais detalhes da obra.

Cune, como Ernesto gosta de ser chamado, coleciona camisas de futebol, conta que o livro reúne 1.400 modelos já utilizados por seleções que disputaram ao menos uma edição de Copa do Mundo, entre 1930 e 2018, além dos times campeões da Copa do Mundo de Futebol Feminino, camisas especiais e usadas em uma única partida, além de ao menos um exemplar de cada país afiliado à Fifa.

Pablo, que também é colecionador e possui as 211 camisas dos países afiliados à Fifa, explica que o atlas quis ir mais a fundo e mostrar uniformes de países que já não existem, como a Iugoslávia, de nações que nunca jogaram um Mundial, como a Índia e a Mauritânia, e de nações que não são reconhecidas politicamente, mas por disputarem as eliminatórias para a Copa do Mundo, foram incluídas no levantamento. Ambos contam que essa parte foi a mais desafiadora para se levantar, especialmente as seleções pertencentes à África, Ásia e Oceania, por conta de mudanças de nomes e divisões nos territórios ao longo dos séculos 20 e 21.

“Durante a pesquisa, descobrimos que no Sudoeste da África, durante o período do Apartheid (1948-1994), havia uma seleção branca e uma seleção preta para representar a região e recebemos essa confirmação de dois times nacionais a partir da filha de Hasso Ahrens, que jogava pelos brancos. Essa divisão só começou a ruir quando os próprios jogadores da Rodésia formaram um time multiétnico, nos anos 1960, seguidos da África do Sul e outras partes do Sudoeste africano, na década de 1970”, revela Ernesto.

Ainda segundo ele, muitos modelos de camisas só foram descobertos por meio de contatos com as federações locais de futebol e contatando pessoas nos países, pois em muitos casos, já não há exemplares delas para contar a história ou fotos de quando foram utilizadas.

CORES QUE PASSAM MENSAGENS

As cores utilizadas pelas seleções de futebol vão muito além da estética. Segundo o professor Luciano Guimarães, elas servem como informação e representam símbolos históricos e ligados à criação de cada país.

Ernesto e Pablo contam que cada continente da bola segue um tipo de orientação ou escolha. Na América do Sul, a maioria das seleções exibe as cores das bandeiras nacionais em seus uniformes, com exceção da Venezuela, o último país a começar a disputar torneios sul-americanos e, por consequência, as Eliminatórias da Fifa, em 1967. Em vez de amarelo, azul e vermelho da bandeira, a federação local optou por uma camisa vinho tinto, cor que representa a Guarda Nacional do país.

Na Europa, é comum ver seleções que usam as cores das casas reais em seus uniformes, como acontece na Holanda, o azul da Casa dos Savoia, da Itália, ou da cor predominante das bandeiras, como o vermelho da Rússia, ou de símbolos reais, como a Casa das Rosas, na Inglaterra, ou o brasão da reconquista da Península Ibérica no uniforme de Portugal.

Já em boa parte das seleções africanas e asiáticas nos quais a maioria da população do país é muçulmana, é comum produzir uniformes em tons de verde, que é a cor oficial do Islamismo, como no caso da Arábia Saudita.

POLÍTICA X ENTRETENIMENTO

Quem disse que futebol e política não se misturam? Eles andam juntos e, em muitos casos, não se sabe onde começa um e termina o outro. No caso das Copas do Mundo, há uma mudança de direcionamento no torneio ao longo das décadas, como explica o professor da Escola de Educação Física da USP, Ary Rocco. “Entre 1930 e 1990, os torneios carregavam forte apelo político em sua construção. A partir de 1994, o entretenimento, o consumo, o turismo e a experiência do consumidor começam a ficar mais em evidência tanto para quem assiste pela TV ou para quem acompanha os jogos in loco”.

Em 1998, a Fifa aprova um documento, chamado “Estádios de Futebol: Recomendações e quesitos técnicos”, que traz 11 pontos fundamentais para os países que desejam sediar uma Copa do Mundo, e a partir deles, há um processo cada vez maior de padronização em relação à infraestrutura e segurança, por exemplo. Isso não significa que aspectos políticos tenham ficado de lado, mas eles aparecem cada vez mais misturados em estratégias de poder suave adotadas por nações que desejam se exibir aos olhos do mundo por meio do esporte.

A forma de se produzir camisas, claro, acompanhou as evoluções do tempo e com a entrada de cada vez mais marcas esportivas no cenário, as seleções, mesmo as com pouca expressão global, passaram a vestir uniformes alinhados ao marketing e ao design. Se antes o algodão era matéria-prima de uma camisa, as tecnologias atuais fazem com que os tecidos ajudem a pele do atleta a respirar melhor e regular a temperatura do corpo durante um jogo, além de uma produção voltada para a sustentabilidade.

COMO É HOJE?

As três maiores marcas esportivas, a adidas, a Nike e a Puma, que vestem 24 das 32 seleções que estarão no Catar em novembro, apresentaram os uniformes de olho no que há de mais tecnológico em tecidos, procurando dialogar com os símbolos e acontecimentos históricos de cada nação.

A adidas, que representa Argentina, Alemanha, Japão, México e Espanha nesta Copa, trabalha com 100% poliéster reciclado com o objetivo de ajudar a eliminar os resíduos plásticos e contêm 50% de Parley Ocean Plastic, nome dado ao material feito com resíduos plásticos reciclados coletados em ilhas remotas, praias, comunidades costeiras e litorais, com o objetivo de prevenir a poluição plástica dos oceanos.

“Para nós é crucial, antes de tudo, criar kits que equipam os maiores atletas de futebol do mundo com roupas voltadas para o desempenho e capazes de ajudar a desbloquear seu mais alto nível de jogo, e ao mesmo tempo icônicas, trazendo sempre designs originais e inesquecíveis por seu apelo visual e ousadia que despertam um verdadeiro entusiasmo entre os fãs de todo o mundo”, declara Jürgen Rank, diretor sênior de design para futebol da marca alemã.

A Nike também aposta em poliéster reciclável para aumentar a sensação de conforto e ‘respirabilidade’ para os atletas das 13 seleções que vestirão a marca americana na Copa de 2022. “Nossos uniformes das seleções representam o exemplo mais recente de como atendemos os atletas com inovação de produtos de ponta dentro e fora do campo”, diz

Scott Dixon, vice-presidente global de futebol masculino da empresa, informa que entre as novidades, o Brasil terá uma coleção inspirada na onça-pintada, que segundo a Nike, simboliza o espírito e a garra dos brasileiros e das brasileiras. O anfitrião Catar vestirá um uniforme em tons desérticos vermelho púrpura do sol subtropical, com detalhes serrilhados em branco para simular a bandeira do país e celebrar a Independência de 1971.

Também ecológica, a Puma, que produziu materiais para as seleções de Egito, Gana, Marrocos, Suíça e Uruguai, acredita que a tecnologia dryCELL vai ajudar a absorver o suor e manter os jogadores secos e confortáveis durante o jogo. A camisa egípcia apresenta sete listras verticais que representam os sete títulos conquistados na Copa Africana de Nações, enquanto o uniforme do Senegal faz uma homenagem à equipe de 2002, que venceu a França na primeira rodada e chegou até as quartas de final do torneio disputado na Ásia.