O mundo mudou muito nos últimos, sei lá, 50 anos.

Estamos mais próximos da felicidade plena.

Antigamente era tudo tão simplório.

Um casal decidia aumentar a família.

A mulher engravidava e esperavam a criança nascer para pintar o quarto de rosa ou azul.

O pai insistia em pintar de azul, mas a mãe não deixava.

Para não discutir, deixava que colocasse o símbolo do Corinthians na porta.

O rebento aprendia a andar.

Os pais ensinavam a andar de bicicleta.

Lá pelos seis anos a criança entrava para a escola, sofreria bullying diariamente, mas ninguém daria a menor importância.

Se fosse menino, no máximo o pai diria para que ele enchesse o garoto folgado de porrada.

Se fosse menina, o próprio pai enchia o garoto e seu pai de socos.

No primário, a criança aprendia a escrever e a fazer as operações aritméticas básicas.

Passava para o ginásio, aprenderia equações do segundo-grau, história do Brasil e as regras de acentuação que não conseguiu decorar no primário.

Vinha o colegial, o adolescente escolheria entre Biológicas, Humanas e Exatas.

Pronto. Seu destino estava traçado.

Seria engenheiro como o pai. Ou advogado, médico, professor.

Arrumaria um bom emprego, se não fosse docente.

Casaria, compraria um belo dum sobrado geminado na Mooca.

Uma vez na vida levaria a mulher e os dois filhos para a Disney, para inveja dos vizinhos.

Na aposentaria viveria os últimos anos de sua vida assistindo uma boa novela com a patroa.

Até que um dia, pimba.

Acabou-se.

Infarto fulminante na hora do Jornal Nacional.

O fim de uma vida tacanha. Lamentável.

Hoje é tudo muito mais dinâmico.

Antes de resolver ter um filho, o casal procura uma escola que tenha vaga para daqui dois anos.

Caso não encontrem, adiam por mais um ano, que é quando vai ter vaga.

Confirmada a gravidez, compram um enxoval todo branco, que é para não trazer a criança para um mundo de preconceitos.

Depois que o bebê nasce ainda não sabem o sexo, só decidirá o gênero quando tiver três anos.

Aos oito meses a criança entra para uma bike school, aprenderá a andar de bicicleta de capacete e joelheira para não correr riscos.

Quando tem um ano e pouco, o jovem diz sua primeira palavra: Daddy.

Aos dois anos entra para os cursos de liderança e matemática coreana.

Aos três já conhece o alfabeto chinês.

Na escola evita interagir com outras crianças, assim não sofre bullying nem corre o risco de ficar amigo de um potencial concorrente por uma vaga de emprego daqui dez anos.

No colégio aprende tudo sobre empreendedorismo, num curso extra aos sábados e domingos.

Cria sua primeira startup aos quinze.

Termina o ensino fundamental ao mesmo tempo em que faz IPO em Nova Iorque aos 17.

Aos 21 tem mais dinheiro que as últimas seis gerações de sua família.

Com 25 completa a terceira ultramaratona, dessa vez na África do Sul.

No aniversário de 35 informa os pais que vai morar sozinho.

A mãe não entende, já que o filho tem tudo em casa.

Ele quer assumir algumas responsabilidades, como comprar uma máquina de lavar roupas.

Não compra, porque vai morar num loft que tem serviço de hotel 24 horas por dia.

Aos 42, resolve casar, falta só descobrir com quem.

Com 50 decide que o casamento não é para ele.

Sente um vazio existencial.

Descobre que sua falta de motivação é resultado de uma depressão que sofre desde os oito anos.

Passa a tomar um coquetel de Rivotril, Ritalina e Frontal.

Não adianta. Nada mais faz sentido.

É quando volta a morar com os pais, onde toda noite assistem o Jornal Nacional e a novela.

Até que um dia, pimba.

Acabou-se.

Infarto fulminante na hora do Jornal Nacional.