Assentados em Tremembé continuam luta de movimento após ataque que deixou dois mortos. Apesar de mudança de foco nos últimos anos, MST ainda enfrenta violência e preconceito.A noite era de luta. Uma reunião havia sido convocada para debater o sumiço de uma bomba de água usada de maneira coletiva pelos moradores do assentamento Olga Benário do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em Tremembé, no interior de São Paulo. De repente, homens dirigindo carros e motos cercaram os moradores e abriram fogo a esmo.
"Foi algo muito rápido, já chegaram atirando. Eles montaram um cerco. Vi armas de fogo e ouvi os tiros. Foram incontáveis. Parecia filme de terror mesmo, não paravam de atirar", conta Roseli Ferreira Bernardo, de 49 anos, moradora do assentamento, onde cerca de 45 famílias vivem da terra regularizada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) há cerca de 20 anos.
"Senti uma queimação muito forte no meu pé e, depois, parecia que eu estava pisando em algo melado. Era meu sangue", diz. Além do tiro no pé, a filha, Olga Bernardo, de 18 anos, também foi atingida por um projétil na mão.
Ao todo, o ataque na madrugada do dia 10 de janeiro deixou seis feridos e dois mortos: Valdir do Nascimento de Jesus, de 52 anos, e Gleison Barbosa de Carvalho, de 28.
"A gente vem recebendo muito apoio, muita ajuda do movimento. Muitas pessoas vieram até o assentamento, fizeram vigília, pois o Valdir foi a vida toda um militante", conta Carmem Faria, viúva de Valdir, na casa onde recebeu a reportagem da DW.
Horas depois do ataque, a polícia informou que evidências iniciais apontavam para uma possível disputa por um dos lotes de cerca de cinco mil hectares do assentamento. Um homem foi preso. "Não acho que seja só pelo problema do lote. Acredito que há mais coisas por trás, como o desejo de nos tirar da terra e usá-las para especulação imobiliária", contesta Faria.
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirma que "as investigações continuam em andamento" e que segue com as diligências "com o objetivo de esclarecer todos os fatos". O ataque também chamou a atenção em Brasília. O Ministério da Justiça e Segurança Pública determinou que a Polícia Federal instaurasse inquérito para investigar o caso. Já o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania informou que iria reforçar ações para proteção dessas comunidades.
Para os moradores, o ataque ao assentamento ocorre em um momento de crescente ódio contra o movimento – que busca se renovar perante a opinião pública. "A gente sente esse aumento do ódio. Ouvimos comentários na rua, na escola… Esse tipo de preconceito está sempre presente. Mas não vamos sair daqui", garante Bernardo.
Questão agrária brasileira
O conflito envolvendo a posse de terra no Brasil não é novo. Segundo Bernardo Mançano Fernandes, professor da Unesp e pesquisador de geografia agrária e movimentos socioterritoriais, conflitos existem desde a formação do campesinato brasileiro, composto por escravizados africanos, europeus e indígenas.
Já o MST surge em meio a redemocratização do Brasil, há 40 anos, quando movimentos sociais voltam a organizar a luta pela reforma agrária no país, que havia sido interrompida com o golpe militar de 1964. "A concentração de terras e a expulsão de populações rurais do campo tinham avançado bastante durante a ditadura e havia um conjunto de sem-terra fruto desse processo", conta Marta Inez Medeiros Marques, professora de Geografia da USP.
Para ela, o movimento consegue sucesso graças a não só os assentamentos, que chegam a 90 milhões de hectares, mas ao desenvolvimento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). "A criação do Pronaf e de outras políticas para a agricultura familiar também são conquistas reveladoras da força desse movimento. O MST na época conseguiu pôr em evidência as demandas do agricultor familiar", diz.
Apesar da importância do movimento para a questão agrária brasileira, o MST continua na mira de congressistas e de partes da sociedade brasileira – vide o ódio crescente sentido pelas vítimas do ataque ao assentamento em Tremembé.
"O movimento camponês está sempre lutando contra a propriedade capitalista e você está lidando com o ataque à estrutura do capitalismo. Então, serão criados problemas com empresas, latifundiários, igrejas, partidos, com diversas instituições. Esse é um debate que eu tenho acompanhado e digo: é sempre uma novela que se repete", afirma Fernandes.
Para ele, a queda no número de áreas adquiridas pela União para a criação de novos assentamentos, que passou de 13 milhões de hectares no auge, em 2005, para zero em 2023, segundo o Incra, passa por um Congresso mais arredio às pautas do campo. "O movimento é muito odiado pela direita. Ele é muito odiado pela população conservadora", completa.
Mudanças na busca por terra
Para tentar driblar a inércia dos governos federais, o MST passou por uma mudança em sua forma de luta política. As ocupações de terras de latifúndios, famosas nos anos 1990 e 2000, deram lugar a uma aproximação com a população urbana, marcada pela popularização dos bonés do movimento e da agroecologia sustentável.
O movimento foi, inclusive, ao mercado financeiro ao lançar Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRAs) em 2020 e 2021 para financiar a agricultura familiar.
Para Gilmar Mauro, integrante da Coordenação Nacional do MST, somente e modelo clássico da ocupação de terras improdutivas não faz mais sentido hoje em dia. Por isso, o movimento busca fomentar também um modelo de agricultura voltado para a agrofloresta e construir alianças em torno de um projeto.
"A reforma agrária não depende só da categoria sem-terra. Ela depende de articulações políticas com amplos setores das classes trabalhadoras e de uma alteração da correlação de forças da política brasileira. Então, nós precisamos nos aliar em torno de um projeto político e de ações concretas. E, por isso, o MST busca dialogar, inclusive com a turma que usa o boné do MST, mas, mais que individualmente, dialogar com esse setor é dialogar com os setores organizados das classes trabalhadoras", diz.
Já para Marques, como a principal base do MST hoje são os assentados da reforma agrária, é fácil compreender o que levou o movimento a se voltar cada vez mais para formas de viabilizar a produção agrícola. A especialista, porém, ainda vê espaço para as pautas originárias.
"[O MST] é um movimento de sem-terra. Não pode abrir mão da pauta da luta pela terra. Ele sabe que a viabilização da agricultura familiar demanda políticas próprias que façam um contraponto ao agronegócio e às exportações agrícolas, que andam de mãos dadas com a especulação fundiária", afirma.
Ao menos no assentamento Olga Benário, a luta parece apenas começar. "Não podemos deixar o movimento parar. Agora é organizar o MST na região e continuar a luta pelos nossos direitos", afirma Carmem Faria.