Embalado pelo sucesso popular do auxílio emergencial de R$ 600, Jair Bolsonaro corre para lançar o Renda Brasil, um programa que deve encampar o Bolsa Família e incorporar os trabalhadores informais contemplados na pandemia. Mas, para isso se tornar realidade, o governo fica numa sinuca de bico, tendo de mexer em uma coisa que está efetivamente funcionando e é bem mais barata. Utilizando o Cadastro Único, o Bolsa Família chega a 14 milhões de famílias que estão nas camadas mais pobres e custa menos de 0,5% do PIB, pagando algo em torno de R$ 188. O auxílio emergencial, que atinge 65 milhões, sai mais caro. Custa por mês mais do que o Bolsa Família consome em um ano. Para o ministro Paulo Guedes, não dá para ser mantido por muito tempo sem estourar as contas.

“Essa ampliação pode comprometer ganhos obtidos pelo governo com a Reforma da Previdência” Marcelo Neri, pesquisador e diretor do FGV (Crédito:Divulgação)

Nos planos do governo, o Renda Brasil deve reunir, além do Bolsa Família, vários benefícios como o abono salarial, salário-família, seguro-defeso e Farmácia Popular. Assim, pretende-se chegar a um valor entre R$ 250 e R$ 300 a um grupo estimado em até 21 milhões de pessoas. Apesar de benéfica, essa ampliação pode comprometer um pilar para o equilíbrio das contas públicas: o teto dos gastos. “Pode prejudicar até os ganhos obtidos com a Reforma da Previdência”, afirma o pesquisador e diretor do FGV Social, Marcelo Neri. Após ser mordido pela “mosca azul” da popularidade em um ano eleitoral, o governo pode se colocar numa situação fiscal difícil. Ao ultrapassar o teto dos gastos, pode colocar a perder o controle dos gastos públicos e repetir a “década perdida” dos anos 80, na opinião de Neri. “É preciso muito cuidado porque a situação é complicada e todos sabem que esse tipo de programa não está no DNA deste governo, podendo piorar o que já funciona”, acrescenta o pesquisador

Bolsa família em risco

Esse é o grande problema. Ao invés de representar um avanço, o Renda Brasil pode desestruturar um programa moldado ao longo de mais de 20 anos, reconhecido internacionalmente com um bem-sucedido projeto de inclusão social. Mais do que um programa de renda básica, o Bolsa Família conseguiu influenciar questões importantes como saúde e educação, já que para recebê-lo a pessoa tinha de cumprir exigências como vacinar e matricular crianças na escola. “Reduzimos a mortalidade infantil e o aluno que ia à escola conseguia obter um resultado melhor até o ensino médio”, explica a ex-secretária adjunta do Bolsa Família, Letícia Bartholo. Ao resolver a questão da sobrevivência imediata, a pessoa pensava em se escolarizar. O problema agora é colocar a discussão em outro patamar, uma vez que a pandemia elevou a linha da pobreza.

A pedido de Bolsonaro, a equipe do ministro Paulo Guedes trabalha intensamente junto com Ministério da Cidadania para que o Renda Brasil saia do papel ainda este ano, começando a vigorar em janeiro de 2021, não interrompendo o caminho iniciado com o auxílio emergencial. Mas, para isso, precisa ter tudo pronto para enviar a proposta ao Congresso nas próximas semanas e convencer os parlamentares de que isso não vai estourar os gastos. O projeto inclui a elaboração de um aplicativo para que os beneficiários possam se cadastrar. No entanto, a recente experiência com o auxílio emergencial e as falhas da Caixa Econômica Federal e da Dataprev devem servir como lição do que não deve ser feito. Muitos candidatos não conseguiram obter o benefício emergencial, as filas se multiplicaram nas agências bancárias em plena pandemia e o aplicativo não funcionou em diversas situações — isso, mesmo quando a população carente conseguia smartphone e acesso à internet. O governo concentrou o benefício do auxílio emergencial na Caixa por razões políticas, para capitalizar politicamente o benefício — associando-o ao governo federal. O Bolsa Família usa informações administradas pelas prefeituras, que têm mais conhecimento da realidade local. O auxílio emergencial criou a toque de caixa uma nova base de usuários, que tentou incorporar o Cadastro Único, com muitas falhas. Houve inúmeras fraudes, inclusive com o benefício ilegal a militares e funcionários públicos. Para Letícia, é importante que esse futuro aplicativo não substitua o Cadastro Único, que mais do que um simples cadastro é um sistema de assistência social distribuído por todo o Brasil. “Ele não pode ser simplesmente trocado por um app. Não se pode fechar essa rede assistencial local porque é a única porta aberta a população mais vulnerável no País”, explica.

A renovação do auxílio emergencial de R$ 600 poderá ter um impacto adicional de até R$ 100 bilhões nas contas públicas. Uma das opções é reduzir o público alvo do auxílio ao longo das próximas parcelas até chegar ao número de beneficiários previstos para o Renda Brasil, em torno de 21 milhões de pessoas. Enquanto o governo corre para manter um benefício com viés eleitoral, e planeja um programa assistencialista, aquele que está funcionando está ameaçado. O verdadeiro plano de inclusão — que requer planejamento, eficiência e compromisso — pode ficar para outra ocasião.