Assexualidade e heteroafetividade: casal em ‘Vale Tudo’ desmistifica relação de afeto

Especialistas mostram que a orientação sexual abordada na novela é mais simples e comum do que se imagina

Reprodução/TV Globo.
Marieta (Cacá Ottoni) pede Poliana (Matheus Nachtergaele) em namoro, em 'Vale Tudo'. Foto: Reprodução/TV Globo.

O improvável casal formado por Marieta e Poliana tem chamado atenção em “Vale Tudo”, remake exibido às 21h na Globo, menos pela diferença de idade dos personagens, e mais por uma relação de afeto não muito comum para a maioria das pessoas. O encontro e aproximação de dois assexuais assumidos sucumbe ao etarismo e levanta questionamento sobre uma orientação sexual ainda pouco abordada.

Ainda é pouco debatida fora da comunidade LGBTQIAPN+, a assexualidade se caracteriza pela falta de desejo ou atração sexual por outras pessoas. 

O tema pode parecer delicado, mas Cacá Ottoni, 34 anos, a quem foi dada a missão de levar informação através do folhetim na pele da secretária da TCA, é encarado com naturalidade.

A carinha de boneca não deixa dúvidas de que a personagem é mais jovem do que a atriz, o que contrasta ainda mais com Poliana, vivido por Matheus Nachtergaele, 57, diferença esta que talvez torne a abordagem da autora da novela, Manuela Dias, ainda mais forte e interessante, com uma enriquecedora troca entre gerações diferentes. 

“É muito legal essa relação. Enquanto ela é de uma geração que já está acostumada com o termo, que já nasceu com essa discussão em voga, ela lida de uma maneira supernatural com isso. Ela descobriu muito cedo, no início da adolescência, teve apoio da família. E o Poliana passou a vida inteira sem nem saber da existência do grupo do qual ele participa. Tem essa diferença. Acho interessante porque traz um olhar para a importância do autoconhecimento, da compreensão do entorno, para que essa pessoa consiga viver em sua plenitude”, diz Cacá, em bate-papo para IstoÉ Gente, que também ouviu especialistas sobre o assunto.

A psiquiatra *Dra. Roberta França diz que é preciso entender a assexualidade como algo natural, e não um problema a ser tratado.

“Diferente do celibato, que é uma escolha consciente, ou de disfunções sexuais, que envolvem sofrimento ou desejo de mudança, a assexualidade é parte natural da diversidade humana. Estudos recentes estimam que entre 1% e 4% da população se identifica como assexual, e a vivência pode ser ampla: alguns assexuais podem sentir atração romântica, outros não; alguns estabelecem relacionamentos afetivos, outros preferem manter-se sozinhos”, esclarece ela.

“Compreender que a assexualidade é uma orientação legítima, não algo ‘estranho’, ‘traumático’ ou ‘temporário’ que precisa ser ‘curado’. Neste contexto, a neutralidade nas informações da novela é fundamental: mostrar a diversidade interna da comunidade assexual, esclarecer que não há relação obrigatória com traumas ou problemas de saúde e, principalmente, evitar narrativas que tratem a assexualidade como ausência de capacidade de amar ou como algo ‘incompleto’”, esclarece.

Para a especialista, falar sobre esse tema na novela é importante para levar informação sobre algo que ainda é desconhecido da maioria das pessoas.

“A televisão tem um papel crucial na construção da informação. Quando a assexualidade é retratada com realismo e empatia, contribui para reduzir preconceitos, aumentar a compreensão e oferecer identificação positiva para pessoas que raramente se veem na tela. No contexto de Vale Tudo, mostrar os personagens assexuais como pessoas completas, com histórias ricas, desafios e conquistas, além de sua orientação sexual, estará informando o público e promovendo inclusão”, avalia.

“Como médica, acredito que a TV, ao retratar temas de sexualidade, tem um compromisso ético de representar a diversidade com responsabilidade. Reforço sempre que assexualidade não é falta, defeito ou anomalia — é apenas uma das muitas formas legítimas de vivenciar o afeto e a intimidade humana. Mostrar isso na ficção é mais do que entretenimento: é um ato de educação, respeito e acolhimento”, destaca a médica.

A **Dra. Leninha Wagner, PhD em neurociência, acrescenta que a heteroafetividade, assim como outros tipos de relação de afeto, são inerentes aos assexuais.

“A assexualidade, ainda pouco compreendida, não se confunde com ausência de afeto ou incapacidade de amar; é apenas uma forma legítima de vivenciar relacionamentos em que a atração sexual não é central. ‘Vale Tudo’ acerta ao mostrar Poliana e Marieta construindo uma conexão genuína, baseada em diálogo, respeito e cuidado mútuo. Ao fugir de estereótipos, a trama oferece ao público leigo um retrato sensível e humano, onde o amor é retratado como escolha e presença, não como obrigação física. Essa representação amplia o entendimento sobre o que significa intimidade, mostrando que vínculos profundos podem florescer fora da lógica sexual tradicional. É um convite para rever crenças, acolher realidades diversas e enxergar que amor e desejo são dimensões distintas, e que cada pessoa pode viver o afeto à sua maneira — sem rótulos, sem pressa, mas com verdade e pertencimento”, pontua ela.

Marieta pede Poliana em Namoro

Poliana, finalmente, se rendeu aos encantos de Marieta. Após ter rejeitado um romance lá no início da novela justamente por ser assexual, o sócio de Raquel (Taís Araujo) na “Paladar” acabou entendendo que pessoas com essa orientação são capazes de se relacionar afetivamente.

No capítulo que foi ao ar no dia 8 de setembro, segunda-feira última, a ex-funcionária da agência de conteúdo Tomorrow pediu o rapaz em namoro e explicou que pessoas assexuais também se relacionam.

“Poliana, eu já falei que sou assexual, mas sou heteroafetiva. Já namorei algumas vezes”, disparou ela, que logo explicou, ao ser questionada “Como seria esse namoro?” como é a relação entre pessoas com essa orientação sexual.

“Ele não sabe da possibilidade de se relacionar também, ele ainda não conhece essa possibilidade. A Marieta que vai apresentar para ele essa possibilidade. Pessoas assexuais não são, necessariamente, pessoas que não se relacionam. Ela já teve namorados inclusive assexuais antes dele”, disse Cacá ainda durante o bate-papo com IstoÉ Gente.  

A atriz também defendeu o destaque na novela, lembrando que, embora existam vários modelos afetivos, poucos são retratados.

“Acho muito importante levantar esse questionamento, acho que tudo o que se contrapõe à imposição da heteronormatividade, eu acho muito importante abordar, porque, por incrível que pareça, em pleno ano de 2025 a gente ainda tem o molde da ‘família margarina’ como a maneira correta, como norma, como regra”, analisa.

“O assexual, essa era a letra que eu menos conhecia dentro da sigla LGBTQIAPN+, ainda é visto com muito estranhamento, ainda é muito patologizado, como se a experiência sexual fosse uma regra. Existem múltiplas maneiras dessa pessoa existir e de se relacionar, observa a atriz.

Referências Bibliográficas

*Dra. Roberta França é médica psiquiatra formada há 22 anos em Medicina pela Universidade Gama Filho. Pós-graduada em Geriatria e Gerontologia pela Universidade Estácio de Sá e em psiquiatria. É membro da Comissão de Direito da Pessoa Idosa (OAB/RJ), membro da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, da Sociedade Brasileira de Psiquiatria e da Sociedade Brasileira de Neuropsiquiatria Geriátrica. Professora da ABRAZ (Associação Brasileira de Alzheimer) e palestrante de diversos temas na área da medicina geriátrica e psiquiátrica. Idealizadora do projeto social Cantinho da Geriatria, que hoje conta com mais de 250 mil seguidores nas redes sociais, levando diariamente conteúdos importantes e de qualidade para a terceira idade, é coautora do Livro Estratégia de Vencedores, condecorada com a Medalha Pedro Ernesto pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro pelo reconhecimento dos serviços prestados aos idosos, foi homenageada com Moção Honrosa pela Câmara Municipal do RJ pela contribuição social na defesa do Direito da Pessoa Idosa e foi  e Medicina Destaque 2023 pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

**Dra. Leninha Wagner é PhD em neurociências, possui formação em neuropsicologia, é Doutora em psicologia, Mestre em psicanálise e Perita Judicial em Psicologia, fundadora da Substância Singular Psicologia Clínica, onde atende pacientes com necessidades psicológicas e emocionais. Também atua na área de psicometria realizando testagem de QI, é palestrante e realiza consultorias particulares como mediadora de conflitos organizacionais. Ela atua em Florianópolis/SC.