Se existe um esporte no Brasil no qual poderia acontecer algo semelhante ao que se vê agora nos Estados Unidos, onde o médico Larry Nassar, condenado a 360 anos de prisão, assediou centenas de jovens ginastas, inclusive campeãs olímpicas, é o futebol. Suas categorias de base e as escolinhas são ambientes de risco para crianças e adolescentes por serem lugares que ainda estão longe de serem bem controlados. Pelo menos é nisso que acredita o ex-goleiro Alexandre Montrimas, de 36 anos, que atuou na Portuguesa, no Bragantino e em times de Portugal e do Chipre. Ele teve de lidar com tentativas de abuso ao longo da carreira, além de ter presenciado vários casos desse tipo em seus tempos de formação. Autor do livro “Futebol: sonho ou ilusão”, Montrimas encabeça hoje uma campanha permanente do Sindicato dos Atletas Profissionais do Estado de São Paulo contra o assédio e diz que, apesar de grave, o problema ainda é enfrentado com frouxidão. No final do mês, a campanha de esclarecimento será reforçada por um vídeo com depoimentos de mais de uma dezena de jogadores consagrados. “Em todos os clubes de futebol no Brasil existe o assédio sexual”, diz. “Não há um jogador que não saiba, não viu ou não tenha passado por uma experiência dessas.”

O assédio sexual é uma praga do esporte brasileiro e mundial que só agora começa a ser combatida com mais energia. Montrimas já fez palestras para jogadores de todas as idades em mais de 40 clubes. Seu objetivo é prevenir o desvio. Grandes times, como Grêmio e Corinthians, já tiveram suas imagens arranhadas em tempos recentes por causa de problemas em suas bases. O último caso de pedofilia no esporte aconteceu no interior de São Paulo, no município de Ribeirão Branco, em setembro do ano passado, quando o treinador de futebol infantil Altamir Pontes de Matos, de 34 anos, foi acusado de estuprar 18 meninos com idades entre 8 e 11 anos. Exames feitos pelo Instituto Médico Legal confirmaram que as crianças foram vítimas de assédio, atos libidinosos e violência. Matos trabalhava como voluntário em um projeto social e ensinava futebol para 60 crianças.

ZONA DE RISCO Categorias de base do futebol são um campo fértil para os assediadores (Crédito:Divulgação)

A força da autoridade

“O assediador é normalmente alguém que tem autoridade sobre o jovem”, afirma o presidente do Sindicato dos Atletas Profissionais, Rinaldo Martorelli. “E essa autoridade, somada à vergonha e ao medo da retaliação, faz com que haja o silêncio da vítima.” O caso de Nassar mostra que o silêncio é frequente nessas situações. Primeiro porque jovens atletas muitas vezes não sabem que os toques que estão recebendo são inaceitáveis — Nassar alegava que se tratava de parte do tratamento médico. Há também uma relação de admiração pela pessoa que está exigindo favores sexuais — ele tinha a reputação de ser o melhor médico para ginastas dos Estados Unidos. Além disso, existe o receio dos jovens de que a resistência ao assédio cause prejuízos para sua carreira de atleta. “Para jogar, o menino muitas vezes está disposto a qualquer coisa. Os pais jogam os filhos aos leões e estão mais preocupados com o fato de ele ser titular ou não do que em saber o que ele está fazendo quando não está no clube ou com quem está andando”, afirma Martorelli.

“Não há um jogador que não saiba, não viu ou não tenha passado por uma experiência de assédio sexual” Alexandre Montrimas, ex-goleiro de futebol

Para o psicólogo João Ricardo Cozac, presidente da Associação Paulista de Psicologia do Esporte, o caso de Nassar mostra que os pais devem ter uma maior participação na prática esportiva dos filhos e não deixá-los apenas sob responsabilidade de treinadores e equipes técnicas. “O distanciamento da família é algo que contribui para que se criem situações de assédio”, diz. Os garotos deixam a convivência familiar muito jovens para viver em alojamentos sem o acompanhamento familiar de adultos.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail
CONFIANÇA A nadadora Joanna Maranhão sofreu assédio de seu treinador (Crédito: Lucas Lima/UOL/Folhapress)

“Esse caso dos Estados Unidos tem tudo para ensinar para gente. Ele ilustra bem o que acontece nos bastidores do esporte e porque não há denúncias”, afirma Montrimas. “Aqui no Brasil aconteceram casos de garotos irem denunciar e serem mandados embora dos clubes. Precisamos mostrar que o caminho do assédio é um caminho errado e impedir que esses garotos sejam induzidos ao erro.” Embora o futebol seja um terreno mais fértil para o assédio, o Brasil tem exibido casos recentes em outros esportes. Na própria ginástica houve uma denúncia, em 2016, um mês antes do início das Olimpíadas. O técnico Fernando de Carvalho Lopes, que treinava o ginasta Diego Hypolito, foi acusado de abuso sexual pelos pais de um atleta menor de idade. O processo que investiga o abuso corre em segredo de Justiça. Há também o conhecido caso da nadadora Joanna Maranhão que sofreu abusos sexuais na infância de seu treinador, a pessoa em quem mais confiava. O ataque deixou marcas profundas e atrapalhou sua carreira e seu desenvolvimento psicológico.


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias