A geneticista Mayana Zatz, 73 anos, trabalha a todo vapor para encontrar um caminho genético para combater o coronavírus. No comando do Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano da USP, em São Paulo, que sofre com falta de verbas, ela desenvolve, atualmente, dois estudos que poderão esclarecer muitas questões sobre os mecanismos de contágio e se tornarem decisivos no combate à doença. Seu alvo são os indivíduos super-resistentes, que não pegam Covid-19 e nem produzem anticorpos. Dezenas de casais em que um membro foi contaminado e outro não estão sendo analisados e resultados promissores já começam a aparecer. “Lembre-se que o cientista tem uma curiosidade mórbida. A gente quer entender o mecanismo, quer contribuir para o conhecimento e muitas vezes isso resulta em tratamentos inéditos”, disse Mayana à ISTOÉ.

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É certo que existem indivíduos super-resistentes à Covid-19 ou isso é só uma possibilidade?
A gente está vendo que existe. Nosso objetivo é tentar identificar essas pessoas e principalmente saber quais são os genes envolvidos e qual é o mecanismo. O primeiro exemplo de resistência foi encontrado no caso do HIV. Descobriu-se que pessoas resistentes tinham uma mutação no gene CCR-5 que impedia a entrada dos vírus nas células. Só que diferentemente do que a gente está vendo no coronavírus, no caso do HIV é raro e a frequência de pessoas resistentes é da ordem de 1%. Enquanto no coronavírus vemos que a resistência é muito mais comum do que imaginávamos. E isso leva à hipótese de ser uma herança complexa, com vários genes envolvidos.

Isso pode ser estabelecido etnicamente? Quando a gente vê o mapa de óbitos na pandemia, fica óbvio que os caucasianos são mais afetados que os asiáticos e africanos.
Pode sim. Por isso quando a gente comparou as pessoas resistentes e não resistentes nos casais, nós fizemos pareado por etnia, por ancestralidade. Uma resistência que está presente na nossa população pode não aparecer em japoneses e vice-versa. Existe uma grande variabilidade genética que tem a ver com a resistência. A África chama atenção pelo número reduzido de casos. Mas, é preciso ver que lá já existe uma enorme seleção natural. Há uma mortalidade infantil muito alta e aqueles que sobrevivem são os mais resistentes, além do fato deles estarem muito mais expostos a agentes patógenos desde criança. Isso explicaria a incidência menor. Não acredito, apesar da possível subnotificação, que haja uma explosão de casos na África, senão a gente saberia, como aconteceu com o Ebola.

A contenção do vírus na Ásia tem a ver com a máscara?
Acho que pode ser uma combinação das duas coisas juntas, por etnia, mas também por cuidados maiores. É um povo mais obediente. O governo manda ficar em casa e as pessoas ficam. Se há algo sobre o qual não temos dúvidas é quanto ao uso da proteção facial. Diminuiu muito o número de pessoas com gripe desde que a pandemia começou, exatamente por causa dessa prática. E os japoneses usam máscaras há muito tempo. Toda vez que a pessoa tem uma gripe, um resfriado, usa a proteção para não contaminar os outros. Acho uma conduta de respeito ao próximo, que deveria ser adotada mesmo depois que a pandemia acabar.

Como foram selecionados os casais para a pesquisa genética?
Foi uma coisa interessante. Em fevereiro de 2020, tomei conhecimento de um caso envolvendo meus vizinhos, que, inclusive, são meus amigos. Ele ficou duas semanas mal com febre, tosse e outros sintomas, mas não chegou a ser hospitalizado. Ficou em casa e a esposa, que cuidou dele, não teve absolutamente nada. Na época, era difícil fazer os testes de viremia, tipo PCR. Mas depois que o marido sarou, eles fizeram os testes de anticorpos e ele tinha anticorpos e ela não. Isso me chamou atenção, mas eu achava que era algo raro. Comecei a falar com um, com outro para tentar descobrir outros casais na mesma situação. De repente, começamos a receber emails relatando casos semelhantes. Chegaram 2.200 emails, e selecionamos uma parte para os testes.

E já há alguma conclusão?
Fizemos o estudo genético com 86 casais e achamos alguns genes candidatos, que foram diferentes no grupo infectado e no grupo resistente, e que teriam a ver com a ativação ou não da via NK, das células “natural killer”, que são as primeiras células ativadas quando há uma infecção. Acreditamos que nas pessoas infectadas essa ativação é mais lenta, tardia, enquanto nas pessoas resistentes ela seria mais eficiente. E isso teria a ver com as variantes genéticas que a gente encontrou. Só que para comprovar isso, primeiro teríamos que aumentar a mostra e fazer os chamados estudos funcionais.

Que gene pode ter relação com a super-resistência?
São genes do sistema HLA, o sistema imune, e dois deles nos chamaram a atenção. Um chama-se MIC-A e o outro, MIC-B. E o MIC-A está aumentado nas pessoas infectadas e o MIC-B diminuído. Enquanto nas pessoas resistentes, o MIC-B estaria aumentado. As moléculas codificadas por esses gentes interferem nas células NK. O que chama também a atenção é que há muito mais mulheres (415) do que homens (261) no grupo de resistentes. Estamos tentando entender isso. Não é só o fato do homem se expor mais que explica o maior contágio. Isso não esclarece o que ocorre nos casais. Quando um é infectado o outro também deveria ser. Casais são o melhor exemplo que a gente pode ter de pessoas que estão juntas, igualmente expostas, com o mesmo vírus e convivendo sem máscara.

Além dos casais, a senhora estuda pessoas mais velhas e resistentes, os super idosos. Qual é o objetivo?
O objetivo é o mesmo, mas é um trabalho mais profundo. Temos um projeto grande no qual estudamos o envelhecimento. Sequenciamos os genomas de quase 1.200 pessoas com mais de 60 anos de São Paulo, que é o maior corte da América Latina de seqüenciamento genômico de idosos. Esse trabalho já foi submetido para publicação e estamos revendo as últimas pendências. Já tinha identificado pessoas com mais de 100 anos antes da pandemia. Mas essas pessoas não foram expostas ao vírus. E cada vez que saia uma notícia de um idoso que se curou, íamos atrás. Conseguimos coletar amostras de treze pessoas centenárias que se curaram ou nem se contaminaram, o que não me surpreende. Esses centenários devem ter muitas variantes genéticas de resistência.

Qual é o entendimento que essas pesquisas têm em relação à Covid-19 e também à outras moléstias?
Vamos tentar entender o que esses genes de resistência fazem porque amanhã pode ter outra pandemia e aí esse estudo pode servir de parâmetro. Quem faz pesquisa tem interesse muito grande em entender o mecanismo que está por trás das doenças, e nem sempre isso pode resultar num tratamento. Gostaríamos que sim. Se os indivíduos que têm o MIC-B aumentado são mais resistentes, posso pensar num tratamento para as pessoas que estão infectadas e aumentar o MIC-B e ativar as células NK. É um exemplo de como a pesquisa básica poderia resultar em um tratamento totalmente inédito.

Há outro exemplo?
Quando houve a epidemia dos bebês com microcefalia, por causa do zica vírus, verifiquei que embora milhares de mães fossem infectadas, o número de bebês que nasciam com a doença era uma minoria. Fui para o Nordeste estudar o que acontecia e encontramos nove casos de gêmeos discordantes, em que um filho de mãe contaminada teve a doença e outro não. Isso falava a favor de um fator genético. Eram gêmeos dizigóticos, não idênticos. Conseguimos derivar no laboratório células neuroprogenitoras de seis bebês, três pares de gêmeos. Essas células são as que dão origem ao cérebro. E as infectamos no laboratório com o vírus da zica. Víamos que o vírus destruía muito mais as células neuroprogenitoras derivadas dos bebês com microcefalia do que nos bebês saudáveis. Daí surgiu a ideia de infectar linhagens de tumores cerebrais, ricos em células neuroprogenitoras e houve uma destruição total das linhagens de tumores. Os tumores também foram injetados em camundongos, que normalmente morreriam em duas semanas. Mas ao receberem o vírus da zica, houve uma regressão enorme e um terço dos animais ficou completamente curado. Em três cães testados, a resposta ao tratamento foi igualmente boa. Essa pesquisa pode se transformar num tratamento importante para tumores cerebrais em humanos, hoje 100% letais.

Como o Centro do Genoma Humano se sustenta?
As verbas federais secaram completamente. Temos dinheiro da Fapesp, que felizmente manteve o volume de verbas. E para esse projeto especifico, recebi recursos da JBS, mas que já acabaram. Recebemos também uma ajuda importante da senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP), que tem enviado verbas de emendas parlamentares para o atendimento de pacientes com doenças genéticas. Com um desses repasses no ano passado, conseguimos comprar um sequenciador de última geração. Na época, ele custava R$ 5 milhões, mas pedimos desconto e pagamos só R$ 3 milhões. É esse equipamento que está sendo usado agora para fazer todos os sequenciamentos. Foi a nossa salvação.

E qual é a capacidade desse equipamento?
Para se ter uma ideia, o primeiro sequenciamento humano levou 13 anos para ser concluído, a um custo de US$ 3 bilhões. Hoje, fazemos em algumas horas um sequenciamento do genoma todo a um custo de mil e poucos dólares. Mas o sequenciamento é uma coisa e outra é conseguir interpretá-lo. Para isso, precisamos de bioinformatas bem treinados, o que é difícil de conseguir, porque outro problema que temos é a fuga de cérebros das universidades. Os melhores pesquisadores estão indo embora porque não veem futuro no Brasil. Eu já perdi dois técnicos, um para a Alemanha e outro para os Estados Unidos.

E como você vê esse avanço do negacionismo no Brasil?
Acho uma tragédia, uma coisa muito triste. Não sei como reverter isso. Mas também acho que o povo nunca deu tanto valor para a ciência. Aqueles que são negacionistas, sempre o foram. Me lembro de uma senhora com quem conversava um dia desses e ela não acreditava que o homem tinha ido à Lua. Assim como existe gente que é contra a vacina. As barbaridades que ouço sobre os efeitos que os imunizantes podem causar são risíveis. Sempre existiram aqueles que negam o pensamento científico, mas, por outro lado, com a pandemia, muita gente acordou para a importância da ciência.