Se um cristão dos primeiros tempos se prostrasse diante da imagem de Jesus Cristo morto, sangrando e pregado na cruz, ele provavelmente se chocaria pela crueza da cena. Hoje, a representação da paixão de um Cristo realista se tornou dominante. Mas ela apenas marca uma etapa nas transformações de mentalidade, padrão artístico e tolerância pelas quais a igreja católica passou em dois milênios. Ao longo de sua história, o Vaticano acolheu e aprovou vários formatos e naturezas da figura de Cristo, da versão simbólica à realista, da olímpica à intimista.

Do símbolo à carne

“Quando a religião católica foi fundada oficialmente em Roma por São Pedro, não passava de um culto clandestino”, diz Wilma Steagall De Tommaso, professora de História das Religiões e autora do livro “O Cristo Pantocrator”, que acaba de ser lançado pela editora Paulus. A obra é um estudo inédito sobre as representações de Jesus através dos séculos. “Nos primeiros tempos, os cidadãos romanos associavam a figura de Cristo à do deus romano Hermes, ‘o Bom Pastor’. Até hoje é possível ver essa alegoria nas catacumbas de Roma. A imagem de Cristo foi emprestada do paganismo. Para um romano do século III, a crucificação era indigna, pois significava uma pena legal destinada aos criminosos e à ralé.”

A cena de Deus-Filho crucificado pareceria uma profanação a um cristão antigo. Embora desde o início a cruz tenha se consolidado como o principal item litúrgico, evocava o sacrifício do Calvário, sem expô-lo com detalhes realistas. “Os primeiros mosaicos e pinturas de Jesus eram simbólicos”, diz Wilma.

Além do Bom-Pastor, Cristo aparece como o pescador e o soldado romano, com o rosto escanhoado e a atitude de quem lidera uma batalha. Trata-se do Cristo Guerreiro, imagem lançada pelo imperador romano Constantino (272-337). Ele impôs o cristianismo como a religião oficial de Roma e a cruz, divisa das legiões. A partir do Concílio de Niceia, no século IV, que legislou sobre a iconografia na igreja, a arte românica consagrou Cristo como Senhor de Todas as Coisas (“Pantocrator”, do grego “panthos”, tudo, e “crator”, senhor, expressão do Apocalipse de São João). Ele é exibido de barba e manto, em pose de mestre ou filósofo, com a mão direita levantada, sentado a um trono, como as esculturas gregas de Zeus. “Não há comprovação científica sobre a aparência física de Jesus”, diz Wilma. “Mas a tradição dá pistas sobre ela.”

Uma das crenças mais fortes da igreja bizantina se refere à Sagrada Face. Conta a lenda que Jesus pregava no Monte das Oliveiras quando recebeu a visita do emissário do rei Abgar, de Edessa. Com lepra, o monarca pedia um milagre. Jesus secou o rosto suado em uma toalha e a entregou ao emissário. Levado ao rei, o pano curou-o. O rosto impresso no tecido virou relíquia, pois indicaria a face real de Cristo. O Mandylion (lenço) da Santa Face permaneceu em Edessa até 944, quando foi transferido para Constantinopla. A relíquia desapareceu nas Cruzadas no século XII para reaparecer em um monastério armênio em Gênova, Itália — e ali é cultuado como a genuína face de Cristo, não pintada por mãos humanas. O Mandylion inspirou outra lenda, a do lenço de Verônica, que teria secado o rosto ensanguentado de Cristo, difundida a partir do século VI.

“A tradição da Santa Face influenciou os retratos posteriores”, afirma a historiadora “Ela passa a ser incluída nas versões futuras.” Após o humanismo renascentista, ganharam espaço cenas como as do Santo Sepulcro (“Pietà”) e do Crucificado. Esta ficou famosa e suplantou os antigos modelos de representação. Até o século XII, Jesus crucificado era caracterizado vivo e de túnica. Mas essa imagem deu lugar a outra, mais dramática: a do homem seminu pregado à cruz, esvaído em sangue. “Houve a necessidade de aproximar Jesus do povo pala via sentimental”, diz Wilma. “Era preciso materializá-lo”.

No fim da Idade Média, os católicos renovaram seus cultos. Como escreveu o historiador Jacques Le Goff: “A Europa se ajoelhava diante de um cadáver”. Até hoje, essa é a imagem de Cristo mais venerada.