Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe assegurada as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social”. Esse trecho da lei Maria da Penha demonstra de forma cabal que nenhuma mulher pode ser apeada de seus direitos. Entretanto, nem sempre o sistema judiciário acolhe a mulher transgênero de acordo com a norma. Na verdade, tem sido criado um ambiente de insegurança em torno de uma questão que já deveria estar mais pacificada. Vê-se ainda erros de identificação que alteram o andamento dos inquéritos, tratando as trans como homens nos processos judiciais.

“Ele ainda me persegue nas redes sociais, mas aprendi a lidar com a situação” Glamour Garcia, atriz

As mulheres trans são as pessoas cujo sexo biológico, designado ao nascimento, era masculino mas se identificam como alguém do gênero feminino. Em situações em que são vítimas de violência doméstica, elas estão cientes de que a legislação pode e deve protegê-las dessa forma. “O fundamento que precisa ser observado é que ser mulher não está atrelado ao sexo biológico e sim, à identidade de gênero”, afirma Fabíola Sucasas Covas, promotora de Justiça e mestranda em Direitos Humanos da Faculdade de Direito da USP. Para ela, a lei Maria da Penha não faz diferenciação a respeito do que é ser mulher.

A juíza Camila de Jesus Gonçalves, coordenadora de primeiro grau de Direitos Fundamentais da Escola Paulista da Magistratura, reconhece que as decisões favoráveis às mulheres trans ainda dependem da interpretação de quem julga. “Na tradição do Direito, o corpo define o sexo biológico, mas há avanços”.

A juíza entende que as decisões do STF, em 2018, que permitiram às pessoas transgênero a troca de nome sem mudança de sexo biológico, e a de um tribunal paulista, que, em maio, condenou por feminicídio um homem que matou, a golpes de madeira, uma mulher trans, com pena fixada em 16 anos e nove meses de prisão, em regime inicial fechado, foram decisivas. “Não é um crime comum, significa que foi reconhecida a condição de mulher da mulher trans”, pontua.

“Me senti humilhada. Foi um erro da Justiça; a juíza deveria ter reconhecido meu nome social” Thifany Bastos, técnica de enfermagem

ERRO JUDICIAL A enfermeira Thifany Bastos foi acusada de agressão como se fosse um homem (Crédito: Chico Ferreira)

Relações abusivas

Esse progresso pode ser observado também no episódio que quase destruiu a vida da atriz Glamour Garcia, de 32 anos. No ano passado, ela viveu uma relação abusiva e foi agredida diversas vezes por seu ex-companheiro, Gustavo Dagnese. “Na época fiquei muito mal”, afirma. Ela procurou a Justiça, conseguiu medidas protetivas que até hoje estão vigentes e Dagnese não pode se aproximar dela. “Ele ainda me persegue nas redes sociais, mas aprendi a lidar com a situação, me sinto empoderada”, diz. Glamour, porém, tem uma boa vantagem sobre muitos de seus pares, que é conseguir dar visibilidade para seu caso e contratar advogados para exigir um tratamento justo desde o momento da denúncia. Há muitas mulheres trans, talvez a maioria, que não têm essa possibilidade. É o caso de Thifany Bastos, técnica de enfermagem, de 31 anos. Após uma briga com seu ex-marido, Renato Coelho Miguelote, em setembro de 2018, ele ficou fora de casa por três dias e quando retornou, numa segunda-feira, já a acusava de agressão, como se ela fosse um homem e estava com uma intimação em mãos, assinada durante o plantão judicial pela juíza Maria Cristina Dias Aleluia, da Comarca de São Gonçalo. “Me senti humilhada! Foi um erro da Justiça!”, lembra. Pior, o documento enquadrou dois homens na lei Maria da Penha por desconsiderar o fato de a profissional da saúde ter feito a retificação social de seu nome. A decisão, em caráter de urgência, ordenou que Thifany saísse de casa e ficasse longe de Renato, a pelo menos 500 metros. Segundo Luanda Pires, advogada que integra a Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP, trata-se de um caso claro de transfobia institucional. “A magistrada sabia tratar-se de uma mulher, Thifany, mas tomou a decisão baseada no sexo biológico dela e não no gênero que ela se define”, afirma. A transfobia pode ser caracterizada pela discriminação cometida pelo Estado ou por representantes dele. É algo que não saí da cabeça de Laura Prevato, ativista pelos Direitos LGBTQIA+, na capital paulista. Ela conta que por causa de sua atuação profissional, tem muito contato com a polícia. “Tive minha identidade e meu nome social desrespeitados pelos plantonistas na delegacia”, conta. Ela tinha sido chamada para ajudar a elucidar um crime e explica que esse desrespeito acontece porque “nem todos os agentes do Estado tem o preparo necessário”, diz. Situações como as de Thifany e Laura explicitam que os tribunais estão longe de pacificar a questão do acolhimento das mulheres trans pela lei Maria da Penha. Um longo trabalho ainda precisa ser feito.