Alibido da moçada na Universidade de Nanterre foi um dos pontos de partida que iriam fazer balançar o poder do conservador general Charles De Gaulle, presidente da França naquele conturbado, utópico e espetacular ano de 1968. Moços e moças reivindicavam dormitórios que acolhessem ambos os sexos. A sisuda universidade disse não. A juventude, hormônios à flor da pele, começou então a ir à luta por tal exigência…

O que tem a ver o desejo sexual daqueles jovens com o presidente francês?

Na esteira da história há momentos em que rebeldes e causas de rebeldia têm encontro marcado. E assim foi com os estudantes de Paris em maio de 1968. Assim ocorreu, também, em diversas capitais de outros países: mude-se o mês, mantenha-se o ano, e todas essas revoltas dos jovens (filhos de classe média e classe média alta e alunos de tradicionais e intelectualizadas faculdades) apresentaram palavras de ordem com igual sentido: a luta pela liberação sexual, pelo fim da opressão contra a mulher, pela erradicação do racismo, pelo término da guerra no Vietnã. Se quisermos resumir ainda mais, podemos afirmar que tudo o que se reivindicava passava pela conquista de direitos individuais e fundamentais, tudo se emaranhava nessa única causa. Assim, é dessa forma, por exemplo, que da questão de alojamentos em Nanterre se viu, de um dia para o outro, a política colonialista de Charles De Gaulle sendo colocada em xeque em manifestações de rua que chegavam a reunir vinte mil universitários (pronto, está respondida a indagação sobre Nanterre feita acima). Com a alma cansada da ausência de perspectivas não demagógicas em meio à guerra fria, a juventude decidiu então lavar a própria… isso mesmo, lavar a alma da qual acabamos de falar. Essas foram as sementes, esse foi o ambiente político e social, cultural e de comportamento daquele explosivo 1968 que veio para mudar definitivamente (não regimes políticos, pois não era essa a proposta) as atitudes e ângulos estreitos com os quais o establishment olhava a vida. Todas as reivindicações eram reformistas e isso as tornavam mais unânimes. Os jovens de 1968 sabiam que desejo e utopias vão além da satisfação desses desejos e dessas utopias. Sonhava-se com tudo, realizava-se o possível. E disparavam-se atitudes aceitas com tolerância: Pier Paolo Pasolini, por exemplo, não foi hostilizado por dizer que, no movimento estudantil, ele apoiava a polícia porque “os policiais são filhos de gente pobre”.

Barricadas em Paris, no Quartier Latin, e barricadas em Berlim; barricadas em Praga e barricadas em Chicago, para citar alguns exemplos. Slogans românticos como “a imaginação ao poder” ou “é proibido proibir” eram frequentes, mas a moçada deixava o romantismo de lado na hora de partir para a porrada contra a repressão policial. Tratava-se mesmo de lavar a alma, com se disse, e brigar fazia bem. Nisso valiam pedras e valia fogo, valiam coquetéis molotov e valia discurso, valiam músicas dos Beatles e dos Rolling Stones e valia pichar todos os muros. Uma das pichações, que nasceu em Paris e se propagou por diversas cidades de outros países, fazia a síntese: “as barricadas fecham as ruas mas abrem caminhos”.

Por que Paris se tornou o símbolo maior de 1968? A história é feita também de homens e de personalismos, e nesse ponto entra o magnético carisma do estudante de sociologia Daniel Cohn-Bendit, vinte e dois anos, ruivo, dono de um inseparável megafone por meio do qual liderava as manifestações. “Dani, le rouge” berrava que não queria revoluções, queria “liberdades individuais dentro das estruturas existentes”, mas a sua irreverência não conhecia limites. Num encontro com o ministro da Juventude francês, François Missofe, olhos nos olhos, ele disparou: “você sequer fala da questão sexual dos jovens”. Daniel Cohn-Bendit tinha um ídolo, o estudante alemão Rudi Dutschke, que incendiava Berlim contra a presença de tropas americanas lutando contra o Vietnã do Norte. Um neonazista meteu-lhe três balas na cabela, Rudi sobreviveu, Cohn-Bendit passou a colocar o fim da guerra entre as reivindações prioritárias.

Também com seu “lado enigmático”, do qual nos falou Jean-Paul Sartre, 1968 marcou o mundo com seus quatro algarismos

Na Checoslováquia, com a chegada ao poder do comunista não stalinista Alexander Dubcek, os estudantes contestaram o domínio soviético – foi a chamada “Primavera de Praga”, esmagada a ferro e fogo por Moscou. Vale observar que também nesse caso o movimento não lutou pela queda do socilaismo, somente pelo afrouxamento da presença da URSS – como já dito, 1968 não brotou para derrubar regimes mas, isso sim, para construir a individualidade. Finalmente, nos EUA a polícia branca continuava a matar negros apesar de já existir lei criminalizando o racismo. As coisas pioraram com os assassinatos do pastor Martin Luther King e do senador Roberto Kennedy, e essas mortes ecoaram nos movimentos estudantis. Houve um ideólogo a influnciar sobretudo a França, terra do Iluminismo na qual há meio século a mulher ainda tinha de pedir licença ao marido para falar em público? Quem mais se aproximou dessa condição foi o filósofo e sociólogo Herbert Marcuse, que fez uma atrapalhada releitura de Sigmund Freud, coisa que muita gente não entendia mas que na época era chique dizer que havia compreendido – e não há dúvida de que as orelhas de sua obra é que foram devoradas. “Os movimentos estudantis continuam em parte enigmáticos”, disse o filósofo Jean-Paul Sartre em 1970. Tudo bem. Não resta dúvida de que até esse lado inexplicável compõe as sementes com as quais 1968 gravou no mundo, e para sempre, seus quatro algarismos.