Jaime Lauriano – Assentamento/ Galeria Leme, SP/ até 20/1/2018

Pode o terreno do sagrado se transformar em terreno político? O trabalho de Jaime Lauriano afirma que sim e isso é o que acontece quando entra-se na Galeria Leme, em São Paulo, onde ele realiza sua segunda exposição individual. Na galeria, que é território do mercado, Lauriano nos transporta ao mercado atlântico, transformando-a em lugar de resistência, e também de luto e de respeito em relação à história de violência da colonização no Brasil.

A partir da palavra “assentamento”, Lauriano aproxima a tradição afro-brasileira das conflituosas questões agrárias no país. O título da exposição refere-se a tomar posse e ganhar responsabilidade por um terreno – tanto na luta de trabalhadores sem-terra como na prática sagrada de religiões de matriz africana. Essas correlações estão sinalizadas na obra “Invasão”, desenho sobre tecido vermelho, posicionado como uma bandeira na parede central da galeria. No trabalho, o artista esquematiza um mapa da espoliação da terra indígena pela colonização escravocrata portuguesa e pelo estado brasileiro.

“Combate” confere poder de fogo à ferramentas do trabalhador rural (Crédito:Filipe Berndt)

Ferramentas de trabalho no campo, posicionadas na parede oposta à bandeira, em um desenho que remete à cartografia das Capitanias Hereditárias, são convertidas em instrumento de denúncia do poder latifundiário brasileiro, herdeiro direto da estrutura feudal da coroa portuguesa. As relações de trabalho no Brasil, atravessadas pela desigualdade e pelo racismo, são também escrutinadas na instalação “Trabalho”, onde são exibidos objetos da vida cotidiana – vasos, tapeçarias, cartões postais, roupas – estampados com motivos escravocratas, intercalados a relatos de vítimas de racismo.

“A exposição ganha ainda mais contundência no momento em que há a tentativa de flexibilizar a definição de trabalho escravo no país; em que o Incra vem sendo desmantelado em troca de apoio dos ruralistas no Congresso; em que povos originários e quilombolas têm os direitos sobre sua terras questionados”, escreve o crítico Bernardo Mosqueira em texto de apresentação da exposição.

O tráfico atlântico, travestido de mercado, está expresso em “Armas de Fogo o Meu Corpo não Alcançarão”, desenho de um pelourinho e de uma estrofe da letra da música “Jorge da Capadócia”, de Jorge Ben Jor, sobre saco de transporte de grãos entre África e América. As roupas e os papéis da população negra no Brasil são convertidas em armas, nas mãos de um artista, intelectual e ativista como Jaime Lauriano.

Roteiros
Das mãos e do barro

Lenora de Barros – Pisa na Paúra/Anexo Millan, SP/ até 20/12

“Das Mãos e do Barro” foi o título de uma exposição de peças da tradição da cerâmica guarani no Paraguai realizada na Galeria Millan em setembro passado, com curadoria de Aracy Amaral. Dois meses depois, Lenora de Barros inaugura na mesma galeria uma individual em que o barro é também protagonista. Coincidência digna de nota, ao levar-se em conta a trajetória da artista, marcada por uma pesquisa alheia às tradições manuais da arte e que sempre priorizou as relações entre a palavra e a imagem.
O partido da gestualidade está expresso logo na entrada da exposição como um statement, nas duas paredes repletas de lambe-lambes com a frase-título “Pisa da Paúra” escrita a mão. No chão, a palavra paúra (sinônimo de medo), moldada em barro, foi destruída pelos pés afoitos do público da vernissage, em uma performance coletiva.

Divulgação

A fotografia, linguagem-mãe do repertório de Lenora de Barros, é utilizada na série “Máscaras de Mão”, composta por pequenas esculturas em que a forma é constituída unicamente em resultado à pressão da mão e dos dedos sobre a matéria. A série faz referência a um poema escrito pela artista em 1972, “MEDO DA FORMAAMORFA”. O barro, nas mãos de Lenora de Barros, parece reverter a busca da linguagem. Talvez o equivalente ao “Adeus à Linguagem”, de Jean-Luc Godard? PA