10/06/2022 - 9:30
Quem conhece o trabalho do escritor norueguês Karl Ove Knausgard vai se surpreender com seu livro recém-lançado no País: ao contrário da verborragia existencialista de Minha Luta, sua obra mais famosa, Outono é uma coleção de crônicas breves e diretas. Trata-se de uma obra curiosa e original, composta por uma série de verbetes que abordam temas tão aleatórios como diversos. Uma boa analogia seria a de uma enciclopédia escrita por um poeta, em que objetos e tópicos fomentam observações que vão muito além do significado intrínseco das coisas, acolhendo contextos variados, memórias e muitos elementos subjetivos.
Embora seu conteúdo possa ser apreciado por todos, o livro nasceu direcionado a uma única leitora: a quarta filha de Knausgard, Anna, que na época ainda não havia nascido (o livro foi publicado originalmente na Noruega em 2015). Seus textos são divididos em três partes, representando os meses de setembro, outubro e novembro, período que marca o outono no hemisfério norte. Cada capítulo é precedido por uma “carta a uma filha não nascida”, onde o autor se desdobra para explicar alguns mistérios do mundo, que, segundo ele, “provam que a vida vale a pena”. “Os pais dão a vida aos filhos, os filhos dão aos pais a esperança. Essa é a transação”, afirma.
Por mais paradoxal que possa parecer, o fragmentado Outono guarda semelhanças, não temáticas, como já dito, mas meramente formais, com a hexalogia Minha Luta, calhamaço que, reunidos os seus seis volumes, ultrapassa as 3.500 páginas. Ambos trazem o estilo autobiográfico que tornou Knausgard famoso, literatura definida como “autoficção”. Sua escrita exibe um fluxo de consciência praticamente sem censura: quase tudo que lhe vem à mente acaba registrado no papel. A criação o tornou um best-seller mundial e uma grande estrela literária, além de torná-lo presença constante nas apostas para o prêmio Nobel e suscitar comparações com Marcel Proust. A narrativa traz situações que vão do cotidiano mais tedioso, com páginas e páginas sobre o ato de levar os filhos à escola, por exemplo, até as mais profundas reflexões sobre as relações humanas – a difícil convivência com o pai, cuja morte é descrita no primeiro volume, é um dos pontos mais sensíveis dessa experiência compartilhada. Se por um lado isso propicia enorme espontaneidade ao texto, por outro permite que o produto final contenha certa irregularidade na qualidade das ideias. Ironicamente, não desvaloriza a proposta, pelo contrário: suas palavras soam como improvisos de um músico de jazz, que ora acertam em cheio na melodia perfeita, ora alcançam uma sequência de notas imperfeitas. É, antes de tudo, demasiado humano.
Intimidade
Composto por 60 ensaios, Outono é a primeira parte da tetralogia inspirada pelas quatro estações. Enquanto Minha Luta escancarava a vida pessoal do escritor – o fato de descrever fatos verídicos e citar pessoas reais o levou a ser processado pelos personagens, incluindo seus familiares –, Outono diz respeito apenas às opiniões de Knausgard sobre o mundo, praticamente sem referências a outras pessoas. A falta de vergonha em expor situações íntimas é outra curiosidade que salta aos olhos, trechos em que ele admite que urinou nas calças, aos quinze anos, em pleno acampamento escolar, ou quando cita nuances de seu comportamento sexual. O leitor então se pergunta: não seria informação demais para sua filha? E chega-se à conclusão de que Knausgard é um autor que, por mais que finja pensar em seus leitores, escreve apenas para si mesmo.