O Supremo Tribunal Federal começou a julgar na semana passada, diante de forte pressão popular que exige claras posições da Corte no combate à corrupção, se órgãos de controle financeiro podem repassar ao Ministério Público e à Polícia Federal dados bancários de investigados, sem prévia autorização judicial. Sob a presidência do ministro Dias Toffoli, o STF introduziu, nos casos mais polêmicos que analisa, o método de modular as suas decisões. Traduzindo: não se trata de agradar gregos e troianos, mas, sim, de não desagradá-los — ou seja, não deixar nenhuma das partes totalmente insatisfeita. Nem por milagre se chega a isso, e, na prática, tais soluções em nada pacificam as questões jurídicas. Independentemente do resultado do julgamento, o certo é que ele deixará brechas para que um oceano de recursos extraordinários referentes a essa questão do compartilhamento de dados sigilosos continue a desaguar no STF. Nada diferente da — agora em moda — modulação que foi vista, por exemplo, na novela da prisão após segunda instância. O ministro Dias Toffoli deu o voto derradeiro favorável ao trânsito em julgado de sentença penal condenatória para início de cumprimento de pena, e, no mesmo instante, lançou para o Poder Legislativo a solução final que, seja ela qual for, inevitavelmente dará margem a infindáveis Propostas de Emenda Constitucional.

No caso de repasse de dados bancários às autoridades competentes para investigarem supostas falcatruas como corrupção, movimentações financeiras atípicas e lavagem de dinheiro, a decisão pela necessidade de “supervição da Justiça”, como Dias Toffoli votou na semana passada, segue o seu próprio entendimento manifestado em julho. Na época, ele acatou liminarmente os argumentos dos advogados de defesa do senador Flávio Bolsonaro e paralisou não somente a investigação referente a Flávio mas, por conexidade, a de outros novecentos e cinquenta suspeitos. Na quarta-feira 20, ao abrir a sessão, Toffoli disse que o tema que estava em julgamento nada tinha a ver com o filho do presidente da República. É claro que tem. Se o STF decidir que não se faz necessária a autorização de juiz para que a Unidade de Inteligência Financeira, a Receita Federal e o Banco Central compartilhem informações, estará decidindo como um colegiado que de fato quer enfrentar a corrupção. Flávio é suspeito de se apossar de parte dos salários de funcionários de seu gabinete quando foi deputado no Rio de Janeiro, e chegou-se a isso ao se descobrir movimentações bancárias atípicas nas contas de seu ex-assessor Fabrício Queiroz. Se o STF optar pela alternativa contrária, ou seja, pela exigência do aval do Poder Judiciário, a investigação sobre Flávio voltará à estaca zero. E morrerá. Em seu voto na semana passada, Toffoli proibiu que instituições controladoras produzam relatórios a pedido do MP. Sua fala foi tão confussa que o ministro Luis Roberto Barroso disse que era preciso um professor de javanês para explicá-lo, referindo-se ao clássico de Lima Barreto, “O homem que falava javanês”.

O príncipe Falconeri

O que dizer sobre a modulação? É coisa intricada a seguir o princípio do príncipe Falconeri, em “Il gattopardo”, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “tudo deve mudar para que tudo fique como está”. Dá-se ao povo a ideia de que muito se está fazendo, mas, na verdade, não se está fazendo nada. Eis uma das modulações à qual o STF pode recorrer: as investigações já em curso devem ter sequência, desde que um juiz autorize, posteriormente, o uso dos dados repassados. É muita confusão, e tal confusão tem tudo para ir além: 1) o STF autoriza o repasse de dados genéricos, como, por exemplo, o montante mensal de uma conta bancária, mas proíbe detalhá-la nas movimentações; 2) seguem de pé as investigações em que o MP ou a PF requisitaram dados, e não aquelas em que eles foram cedidos por iniciativa dos órgãos controladores. A rigor, ficou tudo resolvido e nada solucionado.

Não sem motivo, portanto, o procurador-geral da República, Augusto Aras, protesta. Primeiro, porque Toffoli, dias antes do julgamento, determinou que lhe enviassem dados dos relatórios de inteligência financeira dos últimos três anos. Ficou ele, assim, com a possibilidade de entrar na vida bancária de seiscentos mil brasileiros. Voltou atrás, garante que nada foi acessado, mas o certo é que a sua atitude ficará para sempre registrada na história da Justiça brasileira. Além disso, Aras vê, nas modulações, efeitos negativos para a imagem do Brasil no exterior no âmbito da cooperação para enfrentamento da lavagem de dinheiro. Pontualmente, o julgamento não diz respeito diretamente a Flávio, pois trata da investigação a um posto de gasolina acusado de sonegação de impostos. Houve, em tal investigação, o fornecimento de elementos sem ordem judicial e ela foi anulada pela Justiça Federal, de São Paulo. Isso não significa, no entanto, que o julgamento não englobe Flávio. A decisão do STF necessariamente terá repercussão geral. Ou seja: abrange, sim, o filho de Jair Bolsonaro e quase outros mil investigados.

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