Muita gente torceu o nariz quando Bob Dylan foi agraciado com o Nobel de Literatura, em 2016. A crítica até faria sentido, afinal, era a primeira vez que um músico recebia o prêmio literário de maior prestígio no planeta. Quem conhece a carreira do artista americano sabe, porém, que suas letras sempre estiveram em primeiro plano em relação às composições musicais, mesmo que sua fama tenha vindo graças ao sucesso das canções. A Academia Sueca apenas confirmou isso ao premiá-lo por “ter criado novos modos de expressão poética dentro da tradição da música americana”.

Dylan é o único artista da história a ganhar o Nobel e o Pulitzer, pelos versos, mas também o Grammy, o Oscar e o Globo de Ouro pelas canções. Letras ou poemas, sua obra completa está finalmente disponível no País. Foi dividida em duas edições bilíngues, com traduções de Caetano W. Galindo: a primeira traz o período de 1961 a 1974, época de Mr. Tambourine Man e Like a Rolling Stone; a segunda vai de 1975 até Rough and Rowdy Ways (2020), seu álbum mais recente. Os livros seguem uma ordem cronológica, mas também conceitual. Na fase inicial, o músico folk era o homem do protesto, crítico contundente do establishment e da guerra. Blowin’ in the Wind (box abaixo), seu primeiro grande hit, de 1963, falava tanto dos desafios da juventude quanto da realidade do momento, no caso, a crise dos mísseis em Cuba. Já no segundo volume, empunhando a guitarra, passou a incorporar referências mais eruditas, de T.S Eliot a Stendhal, pseudônimo de Henri-Marie Beyle. O autor mais presente, no entanto, sempre foi William Shakespeare, de quem Dylan pegou emprestado trechos de Romeu e Julieta, Otelo, Júlio César e de A Tempestade, inspiração para seu álbum homônimo, de 2012. Isso sem contar as citações bíblicas, cada vez mais abundantes com o decorrer do tempo e sempre tiradas do Velho Testamento — Dylan tem ascendência judaica.

LETRAS Bob Dylan Companhia das Letras Vol. 1: R$ 99 | Vol. 2: R$ 139 (Crédito:Divulgação)

Influências

Sua ligação com a literatura é antiga e começa com a escolha de seu próprio nome artístico. Nascido Robert Allen Zimmerman, ele mudou o nome em 1959, aos 18 anos. “Bob” é o apelido natural de Robert, mas o sobrenome veio do seu ídolo à época: o poeta britânico Dylan Thomas, ícone da geração Beat. Em termos de estilo, porém, Bob Dylan está mais próximo de Walt Whitman e Emily Dickinson, nomes capazes de transformar em palavras os anseios, angústias, dúvidas e contradições da existência humana. Em seu discurso do Nobel, Dylan abordou o caráter literário de suas canções e citou os três livros que mudaram sua vida: Moby Dick, de Herman Melville, Nada de Novo no Front, de Erich Maria Remarque, e Odisséia, de Homero. Ao final, ele defende que sua obra, apesar do reconhecimento do Nobel, deve ser apreciada como foi concebida, no formato musical, e não apenas nas páginas.

“Canções são diferentes da literatura. As palavras nas peças de Shakespeare foram criadas para serem representadas no palco, assim como as letras das músicas devem ser cantadas, não lidas em uma página. Espero que vocês tenham a chance de ouvir as letras da maneira que elas deveriam ser ouvidas: em shows, gravações ou da forma que as pessoas ouvem música hoje”, escreveu o artista. E termina o texto citando o grego Homero: “Cante por meio de mim, ó musa, e por meio de mim conte a história.” Nas páginas de um livro ou nas melodias de suas canções, Dylan é um mestre da palavra — e esse é o seu maior prêmio.

Sopra no Vento (Blowin’ in the Wind)

Quantos caminhos há de um homem percorrer
Antes de se dizer que ele é um homem?
Sim, e quantos mares há de uma pomba branca navegar
Antes de adormecer nas areias?
Sim, e quantas vezes voarão as balas
de canhão
Antes de serem proibidas para sempre?
A resposta, meu amigo, sopra no vento