Desde os anos 1960, as Forças Armadas cultivam a imagem de fiadoras da tranquilidade da Nação, contra a instabilidade provocada pelos políticos e as ameaças subversivas. Não mais. A partir do momento em que foram enredados pelo bolsonarismo, os próprios militares passaram a ser a principal fonte de instabilidade.

Não que os fardados não tenham eles mesmos fomentado quarteladas para mudar a história do País nos anos 1920, 1930 e, claro, em 1964 (para não citar a própria proclamação da República, no século XIX). Se na década de 1960 a Guerra Fria foi usada para justificar uma ditadura, não há nenhuma desculpa histórica para que os militares tenham tentado intervir nas eleições do ano passado e, pior, dado guarida envergonhada à turba que tentou botar fogo no Congresso e depredou o Palácio do Planalto e o STF, jogando ao chão o próprio brasão da República.

As portas dos quartéis viraram incubadoras de terroristas, na feliz expressão do ministro da Justiça. Há vários episódios constrangedores para uma instituição que se orgulha de ser a “espinha dorsal da Nação”. No 8 de janeiro, um chefe da Guarda Palaciana teria tentado desestimular integrantes da tropa de choque da PM que tentavam conter os vândalos. Entre os próprios executores do quebra-quebra havia um oficial reformado lotado no Ministério da Defesa. Um coronel que ofendeu o Exército e seus generais foi indiciado em Inquérito Policial Militar (IPM), mas essa celeridade na investigação foi uma exceção.

Na própria noite do dia 8, o comando militar impediu que os amotinados fossem presos na porta do Quartel-General do Exército, conforme denúncia do governador Ibaneis Rocha. O fato foi parar nas páginas do “Washington Post”. O ruído, por assim dizer, chega à alta cúpula das Forças Armadas. O almirante Almir Garnier Santos se recusou a passar o comando da Marinha ao seu sucessor, o almirante Marcos Sampaio Olsen, algo inédito desde que os fardados se recolheram aos quartéis nos anos 1980. A esposa do general Eduardo Villas Bôas já havia tirado fotos confraternizando com os terroristas em frente ao QG em Brasília. Ex-comandante do Exército e antigo assessor de Bolsonaro, Villas Bôas é um dos arquitetos da repolitização dos quartéis.

Essa partidarização da caserna era a “prioridade zero” de Bolsonaro, seguindo o modelo de Chávez na Venezuela. O ex-presidente tentou durante quatro anos intervir nas Forças Armadas, promovendo aliados políticos e punindo aqueles que se recusaram a aderir ao golpismo. Em março de 2021, ele causou a maior crise militar desde a redemocratização ao afastar os três comandantes e o ministro da Defesa. Depois dessa interferência, conseguiu que o novo ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, passasse a pressionar o TSE até a véspera do pleito tentando desacreditar as urnas eletrônicas.

Outros episódios mostraram que o assédio valeu a pena. Ao integrar o general Pazuello aos seus comícios sem punição, o ex-presidente conseguiu o apoio tácito dos fardados à participação política dos generais da ativa. Esse endosso velado rasgou na prática o regulamento militar e botou por terra a fama de respeito à disciplina e à hierarquia nas Forças. Foi um dano reputacional difícil de ser reparado. Nos anos 1980, os militares expulsaram Bolsonaro para preservar a imagem da instituição. Quarenta anos depois, o capitão conseguiu rebaixar a instituição à sua própria imagem.

Todos esses episódios lamentáveis não indicam que os militares aderiram ao golpe. Ao contrário. O levante do dia 8 foi um fiasco. Os vândalos esperavam ser seguidos por tanques e soldados, mas eles nunca apareceram. Prevaleceu o silêncio impassível do Alto Comando. Isso, por outro lado, não significa que a imagem dos militares não tenha saído arranhada do episódio, que representou um verdadeiro dia da infâmia na história nacional. Eles precisarão agora demonstrar, por atos e palavras, que permanecem fiéis à Constituição, que servem à população, e não a terroristas travestidos de patriotas. A ideia de que podem tutelar o poder civil em nome da ordem e do progresso, que já é uma interpretação falsa da Carta de 1988, ruiu por terra junto com os escombros promovidos por arruaceiros que diziam falar em nome das tropas.