O infectologista mineiro Carlos Ernesto Ferreira Starling, 59 anos, pratica a medicina há 34 anos. Nessas mais de três décadas, aprendeu muito sobre a dinâmica das epidemias e as melhores formas de combatê-las. Com base em toda sua experiência, o especialista é categórico ao afirmar que, também nesse quesito, o Brasil está perdendo de lavada. “Não existe um trabalho contínuo de prevenção. Há uma mobilização na hora da crise, mas depois as ações param”, critica. Por essa razão, ele acredita que o País ainda irá conviver durante anos com o Aedes aegypti, o mosquito transmissor dos vírus responsáveis pela dengue, chikungunya, zika e febre amarela. “Ele veio para ficar”, afirma o médico, professor da Faculdade de Saúde e Ecologia Humana, em Belo Horizonte, e assessor da Sociedade Brasileira de Infectologia. Até a semana passada, 52 pessoas haviam morrido por causa da febre amarela nesse novo surto.

O Brasil está merecendo o título de o País das epidemias?

Com certeza. É um título que não gostaria que nosso País tivesse, mas infelizmente ele faz parte da nossa realidade. Ela tem mostrado que somos o país das epidemias e reagimos paquidermicamente a elas.

Como classifica a situação?

As epidemias estão dando de 7 x 1 no Brasil.

Por que chegamos a isso?

O que estamos vivendo é o reflexo da fragilidade do sistema de saúde pública e do descaso com que ela é tratada há décadas. Veja o surto de febre amarela, uma doença evitável por vacina. É um desrespeito ao brasileiro.

O que está errado no controle da febre amarela?

Houve um descontrole na cobertura vacinal, com baixo índice de vacinação. Em Belo Horizonte, o total dos moradores imunizados não passa da metade. A baixa cobertura vem acontecendo pelo menos nos últimos dez anos. A vacina está no calendário, é feita aqui. Não há justificativa para isso.

Mas o problema existe. Como explicá-lo?

Há uma descontinuidade administrativa impressionante. Nós, especialistas, tínhamos noção de que isso poderia acontecer e repassávamos as informações às autoridades de saúde.

Que retorno recebiam?

Com as constantes trocas de governos e responsáveis pela área, a interlocução das sociedades científicas fica muito fragilizada. Ninguém ouve nada. Entra prefeito inimigo do outro, acaba com os programas, demite os agentes de saúde… Vemos isso diariamente.

O senhor recomenda a vacinação em massa?

Não. Mas é necessário que haja uma grande melhoria no processo regular de vacinação das pessoas para que a cobertura fique acima de 75% a 80% da população, incluindo as cidades do interior de médio porte que estão próximas a áreas rurais.

Que tipo de medida pode ser implementada?

Falta informação. Algumas das pessoas que morreram de febre amarela se expuseram sem estar vacinadas, se deslocaram para regiões de risco sem a menor orientação. Achar que entregar um cartãozinho de registro de vacinas para os cidadãos é suficiente é querer demais. O controle no nosso CPF, dos nossos impostos, é muito bem feito, diferentemente do que acontece com uma doença que é um enorme problema de saúde pública, porém plenamente evitável.

Há outros problemas práticos atrapalhando o combate da doença?

É muito importante ter o controle da temperatura no armazenamento, transporte e aplicação das vacinas. Se a temperatura estiver errada em uma dessas etapas, se faltar luz e não tiver gerador, elas se perdem. Ter a garantia de que isso não acontecerá é vital. Caso contrário, muita gente pode até achar que está vacinada, mas não está.

Qual a chance de a febre amarela chegar às grandes cidades?

O risco é real. Se a atividade do Aedes aegytpi (transmissor do vírus na zona urbana) está disseminada pelo País, por que ele não começaria a transmitir também o vírus da febre amarela?

O senhor considera adequadas as medidas que estão sendo tomadas de forma emergencial, como a ampliação da vacinação?

Neste momento é o que pode ser feito.

Tornou-se comum os governos se mobilizarem apenas em épocas de emergências. O que acha disso?

Ao longo das últimas duas décadas, o que houve foram respostas espasmódicas aos problemas. As reações acontecem nos momentos críticos, mas as ações não têm continuidade. Lida-se com as epidemias de maneira pontual. O sistema nunca é pró-ativo no sentido de fazer um combate de longo prazo.

Qual o papel da população nisso?

É importante, sem dúvida. Mas as pessoas não têm muito como lidar com isso. Sempre jogamos para a população a responsabilidade de controlar um problema que tem participação vital do Estado. Por que campanhas gerais sobre a Aids são feitas só no carnaval? Da mesma forma, alertas para evitar a proliferação do Aedes e sobre a febre amarela nas áreas de risco deveriam ser dados constantemente.

Por que as autoridades de saúde adotam esse comportamento, independentemente do gestor público em ação?

Costumo dizer nas minhas aulas que a definição de surto no Brasil é quando a imprensa noticia. Aí vira surto. O correto seria manter vigilância epidemiológica rigorosa, orientada por indicadores. Isso é ciência. E ciência não pode ser pautada por política ou pressão. Quando isso acontece, o resultado é o que vemos: epidemias de dengue, zika, chikungunya, surtos de sífilis, coqueluche, caxumba. É um vexame brasileiro.

O senhor acredita que, por tudo isso, ainda vamos conviver por muitos anos com o Aedes (também transmissor dos vírus da dengue, chikungunya e zika)?

Vamos. Ele veio para ficar. É só olhar a curva de crescimento da dengue a cada ano. Falta coleta de lixo regular, as condições de moradia são ruins, o País ainda convive com falta de saneamento básico. Não é à toa que a maior concentração de casos está nas regiões mais pobres. A presença do mosquito é um indicador da nossa incompetência gerencial, da falta de saneamento, de ações efetivas de saúde.

Nesse cenário, o que se pode esperar sobre a evolução da chikungunya?

É uma enorme preocupação. Temos alertado para a explosão de casos. A população está vulnerável. E se trata de uma doença que gera uma morbidade absurda. Ela compromete a força de trabalho, aumenta os custos por afastamento de forma devastadora. Boa parte dos pacientes sofre consequências durante meses, com muitas dores.

E a zika?

Essas doenças têm caráter cíclico, com incidências que flutuam. Mas a tendência é de aumento porque não temos imunidade e a vacina não está disponível. Além disso, há preocupação em relação aos casos da síndrome de Guillain-Barré (doença neurológica) associados à zika. Trabalhos mostram que os casos poderão suplantar a capacidade de atendimento das nossas UTIs. Essas doenças irão gerar uma demanda que o sistema não está preparado para suportar.

Mas a chegada da vacina contra a dengue e a perspectiva da criação de vacinas contra a zika e a chikungunya melhoram ao menos um pouco este cenário.

Sim, mas como mostra o exemplo da febre amarela, não basta ter uma vacina se não há programa de cobertura vacinal adequado.

O programa de combate à Aids brasileiro já foi modelo mundial. Por que iniciativa semelhantes não foram repetidas contra problemas crônicos de saúde nacionais?

O programa de Aids é uma exceção no País. Foi muito bem implementado. Mas vamos lembrar que o poder de pressão dos pacientes com Aids é muito maior do que aqueles que são vítimas de doenças como a dengue ou zika. Você já ouviu falar de alguém famoso que morreu de febre amarela?

O senhor então acha que, aos olhos do Estado, este cidadão vale menos?

Sim. Isso é nítido em um Estado que gerencia a saúde por pressão, que joga para a torcida. Faz parte do vexame.

Mesmo após tantos anos lidando com epidemias, ainda há médicos que não conseguem fazer o diagnóstico correto das doenças ou sequer uma avaliação dos casos que necessitam de mais cuidado. Em que medida o despreparo médico contribui para o agravamento da situação?

A formação médica se deteriorou muito. E as endemias são mal abordadas nas faculdades. Além disso, os recursos diagnósticos são muito ruins. E se eles não estiverem disponíveis, não adianta culpar o médico. Ele pode até suspeitar da doença, mas não a comprova.

Qual a explicação para o crescimento de casos de doenças sexualmente transmissíveis, como a sífilis?

As pessoas estão tendo relação sexual sem preservativo. As campanhas de informação são muito fracas. Em relação à Aids, vejo o crescimento de casos entre pessoas mais jovens. O trabalho de informação a respeito dessas doenças deve começar na escola primária.

O senhor acha que o brasileiro se acostumou com epidemias, como se elas fossem banais?

Não diria que se acostumou, mas ao longo dos anos ele não tem tido outra opção a não ser viver com isso. Não sabe o que é viver sem uma tragédia. Isso é o mais triste e representa um dos marcadores mais terríveis do subdesenvolvimento: não saber o que é viver sem a tragédia do dia a dia.

Como o senhor se sente, como médico, ao perder pacientes para doenças que poderiam ter sido prevenidas com vacinas?

É uma sensação muito grande de derrota. Ser vencido por algo que poderia ter sido evitado é muito ruim. Não podemos nos acostumar com isso, nem a população, nem os profissionais de saúde.