VIAJANTE No aeroporto de Dubai, brasileiro poderá levar até US$ 10 mil em espécie, o mesmo que turistas internacionais (Crédito:justhavealook)

A médio e longo prazo, o Brasil vai experimentar mudanças cambiais que devem aproximá-lo dos países globalizados e com moeda forte. O novo marco legal do setor (PL 5.387/2019), aprovado no Senado, na última quarta-feira, 8, vai colocar a Nação no século 21 — pelo menos em termos de mercado de câmbio. O projeto reuniu 400 artigos dispersos e editados a partir de 1920. Eles foram atualizados (levando em conta as novas tecnologias disponíveis) e simplificados para corresponder ao arcabouço regulatório dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o clube dos países ricos. As mudanças removem barreiras que restringiam a circulação da moeda estrangeira no País.

GLOBALIZAÇÃO Alex Lucena na sede da aceleradora TGH: “o gargalo está nas transações internacionais” (Crédito:GABRIEL REIS)

O novo marco foi uma iniciativa do Banco Central, que há anos tem cumprido uma agenda de modernização (o PIX e o open banking são as iniciativas mais recentes). Ainda precisa da sanção do Executivo, que tem 15 dias para fazê-lo. Portanto, só deve valer a partir do ano que vem. E as mudanças serão implantadas aos poucos. Ele traz novidades para o brasileiro comum (pessoa física) e para as empresas. “Em muitos casos, legaliza práticas já existentes no mercado, como compra e venda de dólar entre pessoas físicas”, diz o especialista em economia cambial Alexandre Chaia, professor do Insper. “As pessoas costumam trocar dólar por real, mas isso era ilegal. A nova lei descriminaliza operações até US$ 500.”

Essa mudança deve levar à criação de plataformas peer-to-peer (pessoa para pessoa, em inglês) de câmbio, para trocas de moedas estrangeiras. Para o brasileiro, a brecha possibilita gastar menos, porque ele poderá comprar a moeda no câmbio oficial, que tem menor tarifa. A notícia tira as casas de câmbio do conforto. Para não perder clientes, precisarão se modernizar. A nova lei também aumenta para US$ 10 mil (cerca de R$ 57 mil) o máximo que o viajante declara nos aeroportos, na saída do País para o exterior. Atualmente, o teto é US$ 1,7 mil em espécie.

As operações de transferência e pagamento para o exterior também ficarão mais fáceis. Isso desperta o interesse das fintechs. Algumas já oferecem aos clientes a possibilidade de abrir uma conta em dólar no exterior, o que economiza em até 10% em taxas e impostos, se comparado às alternativas clássicas, como a compra de moeda em espécie e pelo cartão de crédito internacional. “A nova lei permitirá o PIX internacional, operação simples e sem taxas a pessoa física”, diz Chaia. No ano que vem, as fintechs e os bancos poderão abrir conta em dólar no Brasil. Essa era prerrogativa apenas de empresas de petróleo, administradoras de cartão de crédito, casas de câmbio, seguradoras e embaixadas. “Isso poderá ajudar a aumentar a evasão de capital, mas os benefícios serão maiores do que os prejuízos”, afirma Zeller Bernardino, sócio da Valor Investimentos. Segundo ele, existe uma cultura antiga que liga a saída de capital às manobras ilegais de lavagem de dinheiro. “Quando veio à tona o fato de o ministro da Economia Paulo Guedes ter uma offshore nas Ilhas Virgens Britânicas, a informação provocou estranhamento na opinião pública. Porém, a prática é legal e corriqueira entre investidores.”

As fintechs ganharão mais força no mercado e farão uma concorrência importante aos bancos. “Eles possuem um preço fixo de tarifa, independentemente da quantia. As fintechs possuem melhores taxas, o que pressionará os bancos a baixar as tarifas”, diz Clemens Nunes, professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Economistas apontam outros pontos positivos em potencial. É o caso da possibilidade aberta para projetos de infraestrutura serem indexados em moeda estrangeira, se houver um investidor externo. Aportes em obras em portos e rodovias, por exemplo, implicam em acordos de décadas. “Atualmente, o investidor contrata um hedge cambial — espécie de seguro para proteger o patrimônio da variação do dólar — antes de fechar o negócio, o que encarece a negociação final. Com a nova lei, não haverá necessidade do intrumento de seguro”, afirma Nunes.

As empresas com foco no mercado internacional comemoraram a aprovação da lei. “O maior gargalo do setor é justamente a transferência de capital”, diz Alex Lucena sócio-diretor da TGH, aceleradora de startups de Cannabis medicinal. Mas há ressalvas. “Acho questionável permitir contas em dólar no Brasil, porque fará as pessoas perderem o interesse no real, mas o Banco Central sabe bem como conduzir o processo”, diz Ricardo Rocha, professor de Economia do Insper. De fato, a facilidade de ter contas em dólar foi uma das causas que levaram países como a Argentina a enfrentarem a desconfiança em suas moedas e os problemas decorrentes da dolarização. Os defensores do projeto dizem que a legislação é flexível e o Banco Central ainda vai regulamentar a norma, inclusive determinando os limites a serem aceitos. “Estamos dando continuidade a uma modernização que começou no Governo Collor, quando surgiu o câmbio turismo e o cartão de crédito internacional. Mas é preciso avançar mais. Quando vamos à Argentina, pagamos o jantar no cartão em pesos, mas a fatura chega ao cliente em dólar, que paga em real. Sem tantas conversões, seria mais barato”, argumenta Rocha.