Depois que Barack Obama a derrotou nas primárias do Partido Democrata de 2008, a ex-Secretária de Estado e ex-primeira-dama Hillary Clinton passou a ser considerada a candidata natural da legenda ao fim dos oito anos de Obama na Presidência dos Estados Unidos. Disciplinada, Hillary se preparou nos mínimos detalhes – a ponto de ser considerada “robótica” por parte da imprensa americana. A menos de duas semanas das eleições, a democrata calcula friamente quais serão os próximos passos, declarações e reações para não perder o que, a essa altura, já parece certo. Ela lidera a maioria das pesquisas de intenção de voto, inclusive nos Estados historicamente indecisos, enquanto assiste ao derretimento da campanha de seu adversário, Donald Trump, esse sim atolado em escândalos. Uma série de vazamentos do Wikileaks, contudo, tem colocado à prova as convicções de Hillary na reta final.

Os e-mails hackeados – com a ajuda dos russos, suspeita o FBI – mostram que a candidata pode ser bem diferente da presidente Hillary. Desde o início da milionária campanha, ela tentou se apresentar como uma defensora das minorias, alguém próxima do eleitor comum, embora conviva há décadas entre as pessoas mais poderosas do planeta. No vídeo em que anunciou a candidatura em abril de 2015, dizia que o país estava se recuperando depois de tempos difíceis na economia, mas que “aqueles no topo” ainda eram os mais favorecidos. Entre os personagens retratados, estavam dois irmãos que afirmavam, em espanhol, que estavam se preparando para abrir o próprio negócio. Ciente do aumento da participação dos latinos no eleitorado americano, Hillary sabia que, para vencer, precisaria dos votos deles. Mas uma das mensagens do chefe de sua campanha, John Podesta, vazada pelo Wikileaks, mostra o desdém que seus assessores nutrem pelos latinos.

DESDÉM: John Podesta, chefe da campanha, se referiu aos latinos como “carentes”
DESDÉM: John Podesta, chefe da campanha, se referiu aos latinos como “carentes”

Com o título “latinos carentes e uma simples ligação”, Podesta sugere que Hillary telefone para alguns políticos e executivos de origem latina para pedir apoio. Ao saber disso pela internet, a mexicana Erika Andiola, de 29 anos, 18 deles vivendo sem documentos nos Estados Unidos, se sentiu ofendida. “Não é aceitável usar essa linguagem para se referir à nossa comunidade”, disse à ISTOÉ. “Os republicanos têm afastado os latinos há muitos anos, então os democratas acham que nos têm na mão, independentemente do que digam ou façam, mas isso não é verdade.” Mesmo sem poder votar, Erika se engajou na campanha de Bernie Sanders, adversário de Hillary nas primárias, e a partir daí criou um movimento político chamado “Our Revolution” (“Nossa Revolução”, numa tradução livre para o português). Considerada independente, Erika diz que não faz campanha pela candidata democrata porque acha que ela esconde “muitas inconsistências” e, como muitos jovens que vivem no país, se sente “desiludida” com a elite política americana da qual Hillary faz parte. A falta de empenho em militar pela democrata coincide com a grande desconfiança que ela desperta. Uma pesquisa realizada em julho pelo jornal The New York Times mostrou que, para 67% dos eleitores, Hillary é “desonesta”.

CONTRADIÇÕES

Nas últimas semanas, o vazamento de e-mails privados jogou luz em outras contradições. Hillary sempre foi uma defensora do livre-comércio. Chamada por Sanders de “a candidata de Wall Street (centro financeiro de Nova York)” – os grandes bancos estão entre os principais doadores de sua campanha –, ela defendeu o Nafta (tratado com o Canadá e o México), implementado pelo marido, Bill Clinton, e a Parceria Transpacífico (acordo entre Estados Unidos, Japão e outros dez países), proposta por Obama. Numa palestra ao banco Itaú BBA, chegou a afirmar: “Meu sonho é um mercado comum hemisférico, com comércio aberto e fronteiras abertas.” Ela disse, posteriormente, que se referia ao mercado de energia. Como candidata, passou a rejeitar o Tratado Transpacífico e defender medidas protecionistas. Na quarta-feira 26, novos vazamentos revelaram detalhes da relação entre a Fundação Clinton, políticos e empresários. A revista Time a classificou como uma “amálgama opaca e eticamente confusa de filantropia, negócios e atividades pessoais.” É improvável que isso mude o resultado das eleições. Só o tempo dirá qual Hillary governará o país.

Há décadas na política, a democrata é vista com desconfiança pelos eleitores.
Uma pesquisa do The New York Times mostrou que 67% a consideram “desonesta”

O que ela diz na campanha

Comércio
A candidata rejeita a Parceria Transpacífico, acordo de livre-comércio costurado por Barack Obama, e acena para medidas protecionistas, como a imposição de tarifas unilaterais a produtos importados

Minorias
A democrata batalha abertamente pelos votos de mulheres, latinos, negros e homossexuais. Já promoveu coletiva só com jornalistas latinos e negros e defendeu o fim do racismo, o casamento gay e o aborto

Privilégios
Em discurso na convenção democrata, Hillary prometeu lutar por “liberdade e igualdade, justiça e oportunidade” e agradeceu o então adversário Bernie Sanders por colocar esses temas como centrais

O que revelam os e-mails

Comércio
Na troca de mensagens, apareceu o trecho de uma palestra que ela deu ao Itaú BBA em que defendia o livre comércio: “meu sonho é um mercado comum hemisférico, com comércio aberto e fronteiras abertas”

Minorias
O chefe de campanha, John Podesta, se refere aos latinos como “carentes” e sugere que Hillary dê atenção ao ex-governador Bill Richardson, de origem mexicana. Os católicos também foram ironizados

Privilégios
Um porta-voz se refere a uma informação que obteve com o Departamento de Justiça, outro diz que conseguiu com antecedência as perguntas de repórteres e um gerente da campanha mostra que tentou adiar as primárias