SAUDADES Na última mensagem de áudio enviada por Giselle ao pai, Geraldo, ela declarou seu amor. Ele não respondeu (Crédito:Fábio Teixeira)

A morte repentina, inesperada e solitária tem sido frequente durante a pandemia do coronavírus e acentuado a tristeza e o desalento dos entes queridos das vítimas da doença. De uma hora para outra a chama da existência se apaga e o que fica é um silêncio sepulcral. Em derradeiras mensagens trocadas pelo WhatsApp com parentes e amigos, às quais a ISTOÉ teve acesso, os doentes terminais, presos a camas de hospitais e entubados em respiradores, mostram a sensação de completa impotência nas suas horas finais de vida e o desalento diante de um mal irreversível. São homens e mulheres que deixam filhos pequenos, amores de uma vida e histórias interrompidas. Num País que já tem mais de 152 mil mortos e 5,3 milhões de infectados pela Covid-19, esses relatos da internação feitos pelos doentes e as mensagens de despedida tornam ainda mais melancólico e trágico o impacto da pandemia nas famílias brasileiras.

Nas últimas mensagens de texto que o comerciante Adão Mendes de Araujo, 44, escreveu para sua esposa Noêmia, quando estava internado no hospital regional de Cotia (SP), por exemplo, ele mostrava a dificuldade que tinha ao realizar uma simples ação, como ir ao banheiro. “Fui ao banheiro sem oxigênio, voltei morrendo”, escreveu. Além disso, também sentia dores de cabeça por causa do coronavírus. Foram muitas mensagens trocadas.

FAMÍLIA Nas últimas mensagens que Adão mandou para a mulher Noêmia e para as filhas, ele relatava falta de ar e dizia que não conseguia ir ao banheiro (Crédito:Divulgação)

Noêmia demonstrava esperança e escreveu que estava rezando pelo marido. “Aí meu amorzinho, eu estou orando para não ser nada”, disse. Em outra, ela dizia que sentia saudades de Adão e que estava com vontade de abraçá-lo. “Se pudesse, lhe dava um abraço”. Pelo Whatsapp, Noêmia tentava demonstrar todo o carinho que tinha pelo marido. “Conversa com os médicos para que você possa fazer o tratamento em casa. Aqui eu te daria chá, sopinha gostosa, bastante água fresca, sabe”, afirmou. Sua filha, Maria Clara, 10, também tentou animar o pai com uma mensagem de áudio, pedindo-lhe que voltasse para casa, mas não deu tempo. Adão morreu no dia 2 de junho. Ele completaria 45 anos em 17 de outubro. “Um pedaço nosso foi embora, e a nossa vida ficou devastada”, lamenta Noêmia.

Avó carinhosa

A funcionária pública aposentada Rosangela da Penha Andrade, 55, morreu no dia 30 de junho após ficar internada com o novo coronavírus por 22 dias, no hospital regional de Cotia, referência no tratamento de pacientes acometidos pela Covid-19. Apesar de estar aposentada, ela não parava, era considerada como aquela pessoa com quem todos podiam contar. “Minha mãe era pau pra toda obra”, conta Daniele Aparecida de Andrade, 34, professora, filha de Rosangela. Daniele diz que sua mãe sempre atuou na área de enfermagem, por isso sabia que seu caso era grave. Era portadora de comorbidades que agravam a situação de quem está contaminado pelo vírus. “Ela tinha diabetes, pressão alta”, conta. Avó carinhosa, Rosangela sempre procurava se comunicar com o neto, João Pedro, oito anos, que é autista, mesmo com o menino morando em Nova Mutum (MT). “Aí dizemos ao meu filho que a avó dele foi morar com o Santo Anjo, algumas vezes eu falo que ela foi morar com Deus”, diz. Daniele conta que quando viu sua mãe, no leito do hospital, inchada e sedada sentiu muito medo, percebeu que o fim estava próximo. Nas últimas mensagens trocadas, Rosangela contou que estava com falta de ar, que não podia andar, sentia como se fosse morrer.

Adão de Araújo deixou a esposa e as filhas com boa condição financeira,
mas, depois de sua morte, a família acha que nada mais faz sentido

Em 32 anos de vida, Josélia Domingo Santos Mariano sempre teve a saúde muito frágil. Por causa de seu caráter e postura, era considerada o alicerce da família. Porém, ela não conseguiu vencer a Covid-19. Internada no hospital regional de Cotia no dia 27 de abril, veio a falecer no dia 4 de maio. Segundo a família, ela foi acometida pelo novo coronavírus numa tenda de campanha criada para dar os primeiros atendimentos a pessoas contaminadas, na mesma região.

Desde criança Josélia carrega um tipo específico de pneumonia silenciosa que a levou a ficar internada várias vezes, “mas na tenda não perceberam que essa era a causa dela estar doente”, diz sua irmã, Mariana Domingo Santos, 20. Três meses antes de morrer, Josélia teve um filho, Erick Daniel, no mesmo hospital regional. Hoje ele tem nove meses. “Na despedida, ela me pediu que cuidasse do filho dela como se eu fosse a mãe”, conta. Josélia já havia passado por um momento difícil, em agosto de 2015, quando estava grávida de oito meses. Nessa data, a família faria a tradicional comemoração de chá de bebê. “Ela passou mal e quando chegou ao hospital tinha perdido o filho”, conta. Umas das razões de ser tão apegada a Daniel. Na ocasião, Josélia ficou cinco meses internada, várias vezes entre a vida e a morte, mas se recuperou.

HEROI Francisco Cavalcante, apelidado de Fifi, deixou uma legião de amigos que continuam a frequentar sua casa: “Não quero choro” (Crédito:Gabriel Reis)

A família atribui sua recuperação a algo divino. “Foi um milagre”, afirma Marina. A mensagem de despedida de Josélia foi endereçada à Mariana. “Ela me pediu que cuidasse do filho dela como se eu fosse à mãe”, conta. Com os olhos embargados, mas tentando demonstrar força, Mariana respondeu que não. “Você vai voltar para nós”, disse. Mas a volta não aconteceu.

Giselle Marie Diniz Peixoto, 55, perdeu seu pai, Geraldo Diniz Gonsalves, 81, militar reformado do Exército, em 24 de maio, vítima da Covid-19. A filha conta que o pai não aceitou bem as medidas de segurança contra a pandemia. Ele manteve a rotina. “Tomava café no mesmo bar em Copacabana, onde morava”, disse. Fazia as próprias compras no supermercado, praticava caminhadas sem fazer uso de máscaras e dessa forma acabou se contaminando. Como era portador de doenças cardíacas, não resistiu.

Gisele diz que um dia antes de ser internado, seu pai ligou e bateram um bom papo. “Ele já estava contaminado, mas estava bem, conversamos bastante”, conta. No mesmo dia, à noite, apresentou falta de ar. Mas logo cedo, no dia seguinte foi encaminhado ao hospital. “Meu pai já estava com 50% dos pulmões tomados pela doença. Em dois dias foi entubado e morreu”, relata. O combinado entre pai e filha era que passariam o dia de aniversário de Giselle, 13 de outubro, juntos, para comerem o bolo de chocolate que ela faz, mas não deu tempo. A última mensagem de áudio, com a voz trêmula, enviada pela filha foi de preocupação. “Pai se cuida, precisamos de você vivo”, disse. Ele não respondeu.

ÓRFÃO Com a morte de Josélia, seu filho Erick ficou com a tia, Mariana: “Seu último pedido foi para que eu cuidasse do filho dela como se fosse a mãe” (Crédito:Divulgação)

A enfermeira Andréia da Silva Siqueira Teixeira, 49, era, sem dúvida, uma das pessoas mais queridas da região dos Lagos, no Rio de Janeiro. Natural de São Gonçalo, morava a 30 anos em Búzios e trabalhava no hospital Municipal Rodolfo Perrise. Sua filha, Laís Siqueira Teixeira, 29, psicóloga, conta que sua mãe será homenageada como cidadã de Búzios nos próximos dias. “Era uma pessoa muito querida por todos”, diz. Andréia faleceu devido às complicações da Covid-19 em 19 de agosto. Mesmo sendo diabética, durante o período em que esteve internada, um mês, esteve com os níveis de glicose e a pressão arterial controlados. Mas os pulmões estavam muito comprometidos e ela teve hemorragia. Segundo os médicos esse foi principal problema. “Quase 100% dos pulmões estava comprometido, com cinco dias internada já foi entubada”, conta Laís.

“Não quero choro”

“Quando ele morreu ninguém acreditou”. É dessa forma que Gilnaide Paiva da Silva Cavalcante, 56, descreve o momento da morte de seu esposo, Francisco Cavalcante Júnior, 59, motorista de aplicativo. Ele foi a primeira pessoa a falecer no Hospital de Campanha do Ibirapuera. A família mora na Zona Leste, em Itaquera. Francisco nasceu em Tauá, no Ceará, mas na Terra da Garoa era considerado aquele amigo para todos os momentos. “Ele era brincalhão, tinha alegria em viver”, conta. Quando começou a quarentena, ficou dois meses sem trabalhar, mas mesmo assim pegou o novo coronavírus.

Josélia Mariano sempre teve a saúde frágil, mas era considerada um alicerce da família. Infelizmente, não conseguiu vencer a Covid-19

Apesar de não ser uma pessoa sedentária ou com enfermidades prévias acabou internado durante nove dias. Fifi, como era carinhosamente apelidado,deixou esposa, dois filhos e muitas saudades e antes de morrer disse que não queria tristeza. “Ele não queria que ninguém chorasse já que era uma pessoa alegre e feliz”, conta sua esposa, Gilnaide Paiva Cavalcante. Ela diz que não se conforma com o fato do novo coronavírus ter levado a pessoa que era sua alegria de viver. Como Gilnaide, milhares de pessoas enfrentam a mesma sensação: não se conformam de ter perdido seus entes queridos. O coronavírus está deixando um rastro de morte e tristeza. E as últimas mensagens das vítimas são as provas de uma grande tragédia.