Larysa Denysenko é uma escritora, advogada, ativista de direitos humanos, apresentadora de rádio e TV ucraniana que sempre baseou seu trabalho no atendimento dos mais vulneráveis. Ultimamente, ela vem dando lições de vida para as crianças de seu país. Nos livros infantis Maya and her friends (Maya e seus amigos), de 2022, e Me and the Constitution (Eu e a Constituição), de 2019, ensinou sobre tolerância e leis em linguagem simples. O trabalho recente, que acaba de ser lançado no Brasil, é mais duro: As Crianças dos Ataques Aéreos, no qual oferece aos pequenos uma perspectiva da Guerra da Ucrânia, que já dura mais de dois anos. O argumento central é em torno de Mia, nascida no primeiro dia dos ataques russos e que possui habilidade especial de comunicação telepática com outras crianças em situações parecidas. Ao costurar casos reais, a jurista, que já trabalhou no Tribunal Europeu de Direitos Humanos (Estrasburgo) e como diretora do Ministério da Justiça de seu país, tenta transmitir mensagem de resiliência por meio da verdade.

A Ucrânia é um local histórico de conflitos – seja a invasão mongol, dos impérios austríaco, otomano ou russo-soviético. Como é a vida das pessoas que nasceram sob essa ameaça constante?
Sempre fomos uma terra que os impérios queriam conquistar, anexar e forçar a existir de acordo com suas próprias regras. Guerras, fome, deportações, exílio na Sibéria, proibição do idioma e renúncia forçada da subjetividade, independência e identidade. Em tais condições, uma pessoa desenvolve várias táticas de sobrevivência: congelar e se adaptar; lutar e sofrer tortura e morte; dominar as habilidades de resistência na clandestinidade; isolar o essencial: religião, cultura, valores – para esconder e transmitir aos descendentes. Os ucranianos são uma nação de grande sacrifício, mas não menos vital, temos uma cultura carnavalesca, sabemos como dizer adeus e honrar os mortos, mas também sabemos como celebrar a vida.

Como isso se desenvolveu na prática?
Em um de meus romances, descrevi os ucranianos como um povo de salgueiros. Essa é uma árvore espessa que cresce em toda a Ucrânia, e os ramos abençoados do salgueiro são um símbolo da alegria e da fé que a ressurreição de Cristo trará. De acordo com a tradição cristã, o salgueiro simboliza a renovação da vida e o desejo de paz e justiça. Eles são de grande valor para a apicultura porque florescem no início da primavera, quando as abelhas começam a sair de suas colmeias e não há outras plantas com flores, e isso também é importante para as pessoas cujas famílias sobreviveram ao Holodomor (Grande Fome, genocídio da população entre 1931 e 1933). E um arbusto de salgueiro também pode ser revivido se um galho comum, velho ou morto, for colocado na água ou plantado no solo e regado. Para mim, ele simboliza a sede de vida dos ucranianos, a oportunidade de reviver e florescer em nossa terra, apesar de todos os esforços dos inimigos para destruí-la.

As histórias em As Crianças dos Ataques Aéreos são reais?
O livro foi escrito como parte de uma campanha de defesa para que pudéssemos explicar com essas histórias o que está acontecendo com a Ucrânia, a dor pela qual as famílias estão passando e como elas são corajosas apesar de todas as circunstâncias. Acho que o mundo é muito cruel com a humanidade, mas quando se trata de crianças, o coração das pessoas cresce um pouco mais e elas se tornam mais compreensivas. É por isso que o livro é baseado em histórias reais, às vezes até os nomes permanecem inalterados.

O texto é bastante cru e até violento, já que se trata de um livro infantil. Você acha que ele é relevante mesmo para crianças de uma região não acostumada com guerras, como o Brasil?
Sabe, sou totalmente a favor da honestidade nos textos. É claro que um conto de fadas pode parecer mais suave, distanciando a criança da realidade, mas quando você vê o que a política destrutiva, os crimes de guerra e a agressão da Rússia estão fazendo com seu povo, você precisa falar honestamente sobre isso. Sobre o que as ajudará a escapar, sobre o que é solidariedade, sobre o fato de que, infelizmente, o inimigo pode matá-los. As crianças em tais circunstâncias crescem rapidamente, essa verdade vive em seus corações e é mais dolorosa do que qualquer texto verdadeiro. Quanto às crianças no Brasil, a primeira coisa que digo quando se trata de livros infantis sobre temas existenciais complexos é: “Queridos pais, leiam este livro primeiro e pensem se estão prontos para lê-lo com seus filhos, se estão prontos para responder às perguntas, se encontrarão as palavras para apoiar e confortá-los se eles estiverem chateados”. Mas estou convencida de que uma criança deve saber sobre crimes de guerra, as consequências e a agressão militar, porque isso acontece desde que a humanidade existe. Talvez se fôssemos mais abertos com nossos filhos, honestos sobre isso, haveria menos adultos iniciando guerras.

Como você foi educada em relação à Rússia (na sua época de estudante, a União Soviética), já que os fatos mais marcantes transmitidos fora do país são, por exemplo, o Holomodor liderado por Joseph Stalin?
Eu me tornei estudante na mesma época em que a Ucrânia conquistou sua independência, então tive uma experiência única de estudar Direito por meio dos livros didáticos dos advogados soviéticos e da recém-criada legislação ucraniana. É como se ainda estivesse vivendo no passado soviético, mas já estivesse moldando o futuro do meu país. Na escola, éramos ensinados a ser soviéticos, e não se falava tanto em identidade nacional. Sabe, na União Soviética, sempre se falava em multinacionalidade e, uma vez por ano, as escolas realizavam um feriado com o lema 15 repúblicas — 15 irmãs (de União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). Só que isso apenas significava, entre outras coisas, que os ucranianos tinham salo, hopak e uma coroa de fitas. Mas não se falava em cultura, idioma, processos históricos ou símbolos nacionais.

“As crianças devem saber sobre crimes de guerra”, diz a jurista ucraniana Larysa Denysenko
(Thomas Coex)

“Trato essa instituição (presidencial, de Volodymyr Zelensky) com respeito. Isso não significa que não tenha queixas contra ele”

Qual é a formação de sua família?
Parte vem da Lituânia. Quando a União Soviética ocupou a Lituânia, meus parentes foram deportados para a Rússia, portanto, eu não tinha ilusões sobre a cultura discriminatória deles, mas minha avó e minha mãe não falavam sobre suas identidades e experiências, e sou grata por não ter tido de manter esse silêncio. Fiquei sabendo sobre o Holodomor já adulta, e esse longo silêncio formou um dos meus princípios de vida: não abafar crimes, descrevê-los e provar a culpa dos perpetradores.

Vou lhe contar uma história. Uma vez, lançamos um programa de talentos na televisão, que já era transmitido em muitos países do mundo, fizemos algumas pesquisas e descobrimos que os ucranianos são muito parecidos com os latino-americanos em seus desejos e reações – nós amamos e reagimos vividamente a histórias sentimentais, precisamos de drama, podermos chorar e rir, sermos abertos em nossas emoções. Mas, em geral, é o amor pela terra, a capacidade de trabalhar com essa, a compreensão de como a nação pode ser alimentada pela terra, a hospitalidade e a cordialidade.

Na Segunda Guerra Mundial, a capital, Kiev, foi apelidada de Cidade Heróica por sua resistência à Alemanha. Você acha que a história está se repetindo?
Kiev é uma cidade especial para mim, é a cidade em que nasci. O céu acima dela tem uma altura e uma cor que você só consegue ver nos tetos das igrejas. Essa cidade é muito calorosa, não tem arrogância em relação aos forasteiros, é uma cidade de caráter muito forte e até mesmo de poder místico. Nesta guerra, Kiev foi defendida por um subúrbio heroico, no qual foram travadas batalhas ferozes, onde o exército russo torturou e atirou em pessoas e cometeu violência sexual. Como advogada, trabalho com esses crimes de guerra. Graças à resistência das pessoas e aos nossos militares, Kiev não sofreu com a ocupação russa.

Essa guerra começou em 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia. Por que ela ficou congelada por oito anos e como foi esse período para os ucranianos?
Recentemente, realizamos uma ação: cartas para uma Crimeia livre. São cartas em apoio à península ucraniana e aos prisioneiros políticos que estão sendo perseguidos e presos pelas autoridades russas. É muito doloroso saber que nosso território, a Crimeia, e as pessoas que vivem lá estão sob custódia russa, em cativeiro. Parece-me que um erro muito significativo dos sistemas de segurança e justiça internacional é a negligência e o distanciamento em relação a esse crime. Nos tribunais internacionais, falamos sobre a perseguição aos tártaros da Crimeia. Em dezembro de 2023, a Corte Europeia de Direitos Humanos começou a considerar o caso Ucrânia versus Rússia em relação à ocupação da Crimeia.

“As crianças devem saber sobre crimes de guerra”, diz a jurista ucraniana Larysa Denysenko
(AFP)

“Sobre o genocídio de Stálin soube já adulta, e isso formou um dos meus princípios: não abafar os crimes e apontar os culpados”

Você trabalhou com a Transparência Internacional. Como viu o movimento anticorrupção no país em 2023?
A Ucrânia acrescentou 3 pontos ao Índice de Percepção de Corrupção da Transparência Internacional, o que significa que, durante o ano militar de 2023, conseguimos pressionar a corrupção. A propósito, a Ucrânia e o Brasil têm a mesma pontuação: 104 pontos. Só que essa pressão não é suficiente, a corrupção existe, e os jornalistas investigativos e o sistema de justiça anticorrupção estão se esforçando para garantir que os casos não sejam silenciados, que as investigações sejam eficazes. Certos casos divulgados mostraram que é necessário mudar as abordagens para encontrar os perpetradores e construir a base de provas para os casos criminais.

Qual é a sua opinião sobre Volodymyr Zelensky?
Ele agora personifica a instituição do poder presidencial em meu país, que está resistindo à agressão russa. E eu trato essa instituição com respeito. Isso não significa que eu não tenha queixas contra a pessoa que foi eleita para esse cargo, sendo a principal delas, talvez, a resposta muito ruim do senhor presidente às críticas e aos métodos de luta por votos como se fosse um caso de conquistar a simpatia dos espectadores.

A Ucrânia ainda tem uma população muito conservadora, uma forte extrema-direita. O que você acha que o conflito fará com isso?
Em nossa sociedade, e não me refiro apenas à ucraniana, estou mais preocupada com os populistas, políticos sem ideologia, que alimentam as pessoas com comida insalubre embrulhada em slogans estúpidos. Não gosto de radicalismo, tanto na visão de esquerda quanto na de direita, pois muitas vezes são apenas vozes de ódio, exploração de certas abordagens ideológicas. É por isso que apoio os processos democráticos e a justiça efetiva. Enquanto houver Democracia e o Estado de Direito no país, a liberdade de expressão pode ser diferenciada do discurso de ódio e respondida.