MEMÓRIAS Segredos guardados por sete décadas: falta total de recursos (Crédito:Divulgação)

Mário de Andrade pode ter sido o maior ícone da literatura modernista no Brasil, mas foi Oswald de Andrade quem melhor definiu o movimento do ponto de vista conceitual. Ao voltar da Europa em 1912, aos 22 anos, declarou: “estamos atrasados 50 anos em cultura”. Surgia ali os fundamentos da “cultura antropofágica”, uma das bases teóricas que serviriam de norte para a Semana de Arte Moderna de 1922 uma década mais tarde, em São Paulo.

O centenário desse evento histórico tem ensejado uma série de lançamentos literários. Um dos mais interessantes é Diário Confessional, de Oswald de Andrade, relato inédito há sete décadas e que finalmente chega ao público em edição da Companhia das Letras, organizado com rigor metodológico e competência por Manuel da Costa Pinto. O livro traz o diário em si e outros dois textos não finalizados, embora em estágio bastante avançado.

Antropofagia

O primeiro é A Antropofagia Como Visão do Mundo, obra cujo autor denominava “seu maior livro”, enquanto a escrevia, e acrescentava: ”assim que ficar pronta a enviarei a Albert Camus”. Oswald conhecera o escritor francês em sua visita ao Brasil, em 1949 – os dois viajaram juntos para Iguape, no litoral paulista. O segundo texto é Semana de 22, Trinta Anos, onde dispara críticas a colegas da época. “Ao contrário do que quer a crítica, sempre me julguei mais importante que Mário de Andrade”, anotou. “Monteiro Lobato, um asno atrelado à carroça da reação” e “Como pode se ter talento sendo burro – o caso Graciliano Ramos” são outros registros de sua fúria. Um dos comentários mais incisivos, no entanto, não tem alvo direto: “são muitos Judas para nenhuma ceia”.

DOCUMENTO Capa manuscrita de um dos cadernos reproduzidos em Diário Confessional e foto do autor com Maria Antonieta D’Alkmin e os filhos Antonieta Marília e Paulo Marcos: “moramos em uma casa velha e imprestável”, afirma Oswald (Crédito:Divulgação)

A maior parte do livro, o diário em si, traz informações que permitem contextualizar esses ataques. Por trás da mágoa havia uma questão pessoal. Enquanto muitos artistas da época alcançaram relativo sucesso financeiro, Oswald viveu situação inversa. Em sua autobiografia, Um Homem sem Profissão: Memórias e Confissões – Sob as Ordens de Mamãe, publicada pouco antes de sua morte, em 1954, Oswald descreveu o período áureo de sua vida, quando as glamourosas viagens transatlânticas ao lado da mulher, a pintora Tarsila do Amaral, eram parte da rotina. Fala com orgulho de sua origem abastada; seu pai era um “latifundiário urbano”, proprietário de grandes terrenos no Pacaembu, Sumaré e Pinheiros.

Com a crise mundial de 1929, que coincidiu com a separação de Tarsila e o início do romance com a militante comunista Patrícia Galvão, a Pagu, as dificuldades se acirraram. Filho único, Oswald foi obrigado a se desfazer de bens e da maior parte da herança familiar. Em tom melancólico, o autor menciona dívidas, hipotecas e problemas para obter empréstimos. Lembra os encontros com o banqueiro Gastão Vidigal, a quem pleiteava créditos, ou com Oscar Niemeyer, a quem tentava vender terrenos. Confessa vergonha por ter de negociar obras de arte para pagar a escola dos filhos. Ao fim da vida, o grande autor do Manifesto Antropofágico foi engolido pela falência.

Oswald de andrade em três obras