Há uma tendência jurídica em diversos países que leva à revisão de fatos históricos que causaram a morte de muitas pessoas. Na América Latina, por exemplo, a Argentina, empreendeu recentemente o julgamento de crimes cometidos pela ditadura militar (1966-1973), ações que levaram à morte mais de trinta mil pessoas.

Na Europa, o Parlamento regional da Catalunha também realizou uma revisão, mas ligada a um tema bem diferente: os políticos aprovaram o perdão a centenas de mulheres assassinadas entre os séculos XV e XVIII após serem acusadas de bruxaria. Ao longo do processo já foram identificadas mais de 700 nomes, mas acredita-se que o número de pessoas assassinadas pelo Estado pode chegar a mais de mil.

A decisão da Câmara catalã acontece após uma série estudos realizados por pesquisadores espanhóis demonstrarem que a Espanha foi um dos primeiros países da Europa a adotar leis contra as práticas que, em 1424, eram consideradas “crimes de bruxaria”.

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Segundo uma das pesquisas que serviram de base para a moção, realizada pelo historiador Pau Castell, da Universidade de Barcelona, as mulheres consideradas bruxas eram geralmente executadas pela morte súbita de crianças. Havia, no entanto, uma série de motivos banais que podiam justificar ações semelhantes. Uma colheita mais fraca que o habitual, por exemplo, podia motivar uma acusação.

À imprensa local, Castell declarou que havia uma resistência estrutural a determinados comportamentos do gênero feminino, hábitos ou práticas que levavam as pessoas a acreditarem que elas estavam possuídas pelo diabo.

Por causa do biótipo feminino mais frágil, alegavam, elas seriam vítimas fáceis para os espíritos do mal. Era uma posição generalizada: de toda a população acusada e condenada por feitiçaria na Espanha, 90% eram mulheres.

A perseguição às bruxas na Europa era patrocinada pela Igreja Católica, que vivia o auge da Inquisição. Ocorre, no entanto, que o atual processo não se deu no ambiente reliogoso, mas no Parlamento. “Por uma questão de jurisdição local, a Igreja tinha menos força na Catalunha”, explica Luiz Peres Neto, professor da Universidade Autônoma de Barcelona.

Ele defende que, com a medida, os legisladores promovem uma ação importante para corrigir um enorme erro do passado. “A reparação tem grande dimensão histórica porque as bruxas medievais eram as feministas daquela época”, compara.

Os parlamentares responsáveis pela lei são membros de partidos pró-independência da Catalunha, mas com origem em diversos espectros políticos. Durante os debates, foi decidido que as mulheres devem ser reconhecidas como “vítimas de perseguição e misoginia”.

ALVO Preconceito: 90% dos espanhóis condenados eram mulheres (Crédito:Divulgação)

Ontem e hoje

Partidos como o Popular, de direita, e o Vox, de extrema-direita, se posicionaram contra o projeto. Algumas deputadas do Vox, inclusive, ainda usam o termo “bruxa” pejorativamente para se referir às mulheres da oposição. “A história dessas mulheres mostra que a estrutura de desprezo e repulsa pelo feminino vem de longa data”, afirma Luanda Pires, advogada, especialista em Direitos Humanos e membro do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). Os estudos acadêmicos que deram estofo à nova legislação passam também a fazer parte do currículo acadêmico. Luanda afirma que o reconhecimento público das brutalidades cometidas contra as mulheres é elogiável, mas defende que o tema deve ser incorporado às discussões que envolvem as futuras gerações. “O que aconteceu está ligado ao presente. O que antes era considerado uma ‘caça as bruxas’, é o que chamamos de ‘femínicidio’ hoje em dia.”