Está prestes a estrear a quarta temporada da série “O conto da aia”. Baseada na obra homônima da escritora canadense Margaret Atwood, aborda o limite máximo da intromissão estatal na vida dos cidadãos — no caso específico das mulheres, passam elas a ser propriedade do Estado que decide quem pode ou não ter filhos. No governo federal brasileiro parece que alguém, justamente do sexo feminino e que ocupa o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, encanta-se com essa possibilidade: Damares Alves. Ao que tudo indica, ela é uma entusiasta da distopia brasileira de “O conto da aia”. É dever ético e obrigação legal do Estado promover a educação e a saúde feminina, mas, para a ministra, talvez haja mulheres mais mulheres que outras mulheres. Assim, Damares estaria defendendo a inconstitucional portaria que impediria parte da população carcerária feminina, das profissionais do sexo, das que estão em situação de rua e de portadoras de HIV e tuberculose de terem o direito a engravidar, gestar e dar à luz. De que forma haveria a laqueadura dessa população vulnerável? Dando-lhes o medicamento Implanon NXT: trata-se de um bastão, implantado de modo subdérmico, que impede a ovulação pela liberação da substância etonogestrel.

PRECONCEITO O conto da aia brasileiro: laqueadura em presidiárias (Crédito:Divulgação)

Atropelo aos direitos humanos

“Qualquer tipo de obrigatoriedade do uso de contraceptivos pode, sim, ser considerada ilegal e inconstitucional”, diz a doutora em direito civil pela USP e professora de Direito da Universidade Mackenzie, Ana Cláudia Silva Scalquette. “O Estado precisa cuidar para que a mulher tenha plena liberdade de escolha”. Projetos similares foram tentados pela ditadura militar, e confirma-se, assim, que o Ministério de Damares, sem estridência, segue a ser uma espécie de central do extremismo da direita, no campo político e social, berço das mais retrógradas e radicais tentativas de cerceamento no terreno comportamental. “É direito garantido a escolha pessoal de querer ou não usar contraceptivos”, diz a promotora de Justiça e idealizadora do Estatuto da Vítima, Celeste Leite dos Santos.

R$ 5,6 milhões seriam gastos somente com a população carcerária

Claro que Damares não chega a cogitar da hipótese de o Estado apropriar-se fisicamente de alguém, a quem ele dera permissão para engravidar, como ocorre no livro de Atwood, mas tal apropriação se dará, de forma subliminar e com perversa sutileza, caso a nova portaria passe a vigorar. Veja como: o Estado não promove políticas públicas para as mulheres, e, uma vez marginalizadas, empobrecidas e doentes, projetos de eugenia nascem como sendo a grande solução — uma peneira demagógica a tentar tapar o sol do desprezo. Muitas dessas mulheres acabam de maneira ingênua e involuntária até concordando com as resoluções. Esse é pulo do gato dos que acham que existem merecedoras e não merecedoras de tocarem os seus genes para frente. É o Estado tornando-se dono dos direitos reprodutivos, da sexualidade e da feminilidade daquelas que se tornam alvos dessa ideologia. Há também, em tudo isso, uma farra com o dinheiro público. O SUS teria de pagar R$ 280,00 por cada bastão de Implanon. O Brasil tem cerca 60 mil presidiárias. Imaginemos que somente 20 mil delas fossem abraçadas pela portaria. O gasto seria de R$ 5,6 milhões. Isso só com detentas. Some-se as que estão em condições de rua, as profissionais do sexo e as portadoras de tuberculose e HIV.

RESPEITO Portadoras de HIV devem ter autonomia familiar: o contrário é inconstitucional (Crédito:Alina Souza)

Há, no entanto, mais atuações de Damares e, por isso, é bem provável que ela vá se sentar na bancada de interrogatório da CPI. Em meio ao caos da saúde brasileira e aumento sem controle do número de mortos, a ministra decidiu retirar a oferta de leitos de UTIs e produtos de higiene aos povos indígenas. Esse fato significou a anulação da Lei de Proteção aos Indígenas, que repassa ao Estado a obrigatoriedade de tais serviços. A justificativa do ministério é risível: os indígenas não teriam sido “diretamente consultados”, pelo Congresso Nacional, se queriam ou não esses benefícios. Mas o desdém vai bem mais longe e se cobre de maior gravidade. Tanto é assim, que o senador Humberto Costa, no requerimento em que pede a convocação de Damares à CPI, a acusa de ter excluído as etnias indígenas do grupo prioritário de vacinação. Mostra-se, mais uma vez, o desprezo que ela tem com a integridade física, psicológica e moral das minorias.

Damares Alves ganhou cargo na Esplanada dos Ministérios por servir plenamente ao bolsonarismo na área comportamental. Damares tem o rótulo de ministra dos Direitos Humanos, mas sequer respeita a condição de que tais direitos são cláusulas pétreas da Constituição no capítulo das Garantias Fundamentais. Exemplo disso é a anulação, que ela fez, da concessão de anistia política dada a 112 pessoas que foram presas pela ditadura militar. No ano passado, Damares também já havia anulado a anistia de outros 295 oponentes da ditadura, sob a falácia de que não houve perseguição política ao longo do regime de exceção. Essa atitude de Damares é o parâmetro que dá a medida exata do quanto o bolsonarismo e ela própria atropelam os direitos humanos.