Apesar do amplo reconhecimento internacional e da estante repleta de importantes prêmios literários, Nélida Piñon não é bem uma escritora. Seu trabalho está mais para o de uma artesã que tece obras com palavras e sonhos no lugar de inertes tecidos coloridos. Seu novo romance, o ambicioso “Um Dia Chegarei a Sagres”, demorou um ano para ser escrito – e outro ano para ser reescrito, pelo menos oito vezes, até que cada substantivo e cada verbo estivesse perfeitamente alocado onde a autora os escolheu para descansar. Nélida Piñon é tão interessante quanto seus livros. Aos 83 anos, a escritora carioca e primeira mulher a ocupar a presidência da Academia Brasileira de Letras é carismática como seus personagens. O protagonista Mateus, narrador da obra mais recente, é filho de uma prostituta e criado pelo avô numa aldeia portuguesa do século 19. Isso não o impede de ter utopias – mesmo que sob a perspectiva de um miserável. As pesquisas para o épico já estavam prontas, mas o trabalho em campo teve de aguardar a morte do cãozinho da autora, Gravetinho, que não suportaria a viagem. “Cheguei a Portugal sabendo por onde caminhar, mas precisava estar lá pessoalmente para captar a paisagem, os enigmas do povo, os locais onde o sangue foi derramado”, afirma a escritora. “Eu precisava descobrir de onde veio esse nosso idioma deslumbrante.”

Durante a viagem, ela fez anotações, gravou diálogos, escreveu as 512 páginas do livro à mão. Em maio desse ano, entregou o manuscrito à editora Record. “Sou valente, audaciosa. Enfrentei a pandemia com a minha literatura.” O carisma não lhe rende só aventuras literárias, mas também projetos pessoais. Em uma viagem à região espanhola da Galícia, sentou-se por coincidência ao lado de Sergio Rial, presidente do Santander.

Falaram sobre a origem em comum e acabaram virando amigos. Na volta ao Brasil, Nélida ficou surpresa: o banco espanhol havia decidido patrocinar “Nélida”, documentário do diretor Gerson Damiani, que chegará às telas em 2021.

LANÇAMENTO

Um Dia Chegarei a Sagres
Nélida Piñon
Editora Record
Preço: 62,90, 512 págs.

ENTREVISTA
“A cultura vive momento infeliz, mas é o pilar de um país”

A senhora foi a primeira mulher a presidir a ABL. Existe diferença entre escritores e escritoras?
Não. A mulher chegou tarde ao mundo da cultura canônica, da universidade. Foi proibida de ler e escrever, até uma rainha podia ser analfabeta. As escritoras foram asfixiadas. Quando a mulher finalmente conseguiu entrar no circuito literário, a diferença sumiu. A partir daí, o que vai distinguir a narrativa é a voz.

O amor e o sexo permeiam a sua obra. Qual dos dois é mais importante?
Em certos momentos, são inseparáveis e indissolúveis. Você não pode imaginar que não exista prazer no seu corpo mesmo sem amor. O importante é que não haja brutalidade, mas encantamento. Homens e mulheres devem agregar à função carnal uma beleza, uma finura. É preciso que o amor e o sexo não repudiem a humanidade alheia.

Dizem que sua obra tem três assuntos principais: seu avô Daniel, Machado de Assis e os gregos. É isso mesmo?
Sou muito grata à família que tive, eles fizeram de mim a mulher que sou hoje, só tenho a agradecer. Isso faz parte da minha formação. Já Machado de Assis é meu passaporte brasileiro. Saber que ele existiu acrescenta ao Brasil uma outra grandeza. Um país que teve Machado de Assis não pode fracassar, não tem o direito de errar. Os gregos permeiam toda a minha formação. A partir dos dez anos, quando percebi que era brasileira mas tinha também a cultura galego-espanhola, descobri que podia avaliar a sociedade sob o olhar de duas civilizações. Minha maneira de ver o mundo alargou-se. Gosto de criar porque sei que inventar me enaltece.

Como vê a cultura brasileira hoje ?
O Brasil está abandonado há muito tempo. Não é declínio, porque nunca ascendeu. Nunca fomos tratados, por Brasília, com o fervor necessário. Um País onde falta 70% de saneamento básico e há uma educação tão precária é uma soma de fracassos. Estamos sofrendo mais do que nunca. Na cultura vivemos um momento infeliz, mas ela é o pilar de um país. Não é feita só por intelectuais ou artistas, mas pelo povo. No folclore, no jeito de se vestir, na cozinha. É o que permite ao Brasil essa unidade maravilhosa.

Há alguma coisa que a senhora gostaria de ter feito e não fez?
Vou abrir uma confidência. Em uma conversa com minha mãe, disse a ela: ‘com a morte do meu pai, não pude realizar meu sonho, que era ter feito doutorado em Harvard.” Ela respondeu: ‘minha filha, e acaso isso fez falta?’. Foi uma das coisas mais lindas da minha vida saber que ela confiava em quem eu havia me tornado. Depois fui professora em Harvard, então tudo valeu a pena.