O derradeiro golpe de Hitler contra a liberdade de expressão artística foi dado em 1937. Depois de queimarem livros, agentes do regime nazista montaram uma exposição com a chamada “arte degenerada”, em que quadros e esculturas modernistas eram postos ao lado de fotos de pessoas com transtornos mentais e deformidades físicas. O intuito era mostrar que aquelas obras vinham de mentes doentias e faziam parte de uma conspiração de judeus e comunistas para acabar com os bons costumes alemães. Assusta ver que um discurso parecido, tomando por base a degeneração dos bons costumes, tenha feito a exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira” ser fechada no domingo 10, no Santander Cultural em Porto Alegre, um mês antes do encerramento oficial. Após comentários violentos nas redes sociais e manifestações presenciais em que se repetiam palavras de ódio, o banco decidiu conter a polêmica acreditando que nada positivo surtiria a partir de então. O caso abriu um precedente perigoso ao sucumbir a questões morais e políticas em detrimento do valor de uma obra que visa se expressar esteticamente e dentro de um contexto. Entre pesquisadores, o argumento é que houve censura. “Considero o que aconteceu uma tragédia sintomática da época de obscurantismo, conservadorismo histérico e violência que estamos passando”, afirma o professor do departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em história da arte Francisco Cabral Alambert Junior.

A exposição mostrava 270 obras de 85 artistas, entre eles os mundialmente conhecidos Cândido Portinari e Adriana Varejão. Diversidade de gênero e sexual era a questão comum entre os trabalhos. Alguns, porém, foram vistos como incitação a depravações sexuais e ao ódio religioso. Talvez a mais polêmica, a obra “Travesti da Lambada e Deusa das Águas”, de Bia Leite, foi taxada de apologia à pedofilia. “O objetivo do trabalho é justamente o contrário. É que essas crianças tenham suas existências respeitadas”, afirmou a autora em entrevista. Um dia após o fechamento da exposição, os promotores Denise Villela e Júlio Almeida, do Ministério Público do Rio Grande do Sul, verificaram as obras e concluíram que a acusação de pedofilia é infundada. “O que existe são algumas imagens que podem caracterizar cenas de sexo explícito. Do ponto de vista criminal, não vi nada”, afirmou Almeida.

É importante que as pessoas expressem suas reações. O objetivo de uma exposição é dialogar, possibilitar que o público discuta seus pontos de vista e desenvolva senso crítico Joy Garnett, da fundação americana National Coalition Against Censorship

Rodrigo Cássio Oliveira, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) e doutor em Estética e Filosofia da Arte, acredita que deve ser garantida a liberdade de manifestação de quem não gosta, não concorda ou ainda se sente ofendido com uma obra. “Mas há diferença entre não gostar e pedir para que não seja exibida”, afirma. “Exigir o fim da exposição é intolerância. As obras que estavam expostas seguem uma estratégia de afrontar e chocar, e isso faz parte da arte há muito tempo”, diz. A artista Joy Garnett, da fundação americana National Coalition Against Censorship, que se organiza contra atos de censura, concorda. “É importante que as pessoas expressem suas reações”, diz. “E o objetivo de uma exposição é dialogar, possibilitar que o público discuta seus pontos de vista e desenvolva senso crítico”. Para Oliveira, uma maneira de resolver a polêmica teria sido estipular uma classificação indicativa. Questionado, o Santander afirma que “a exposição era aberta para visitantes de qualquer idade, mas havia um cartaz alertando para a existência de obras com nudez.”

DITADURA Repressão a expressões artísticas marcou períodos históricos sombrios, como o nazismo, que promoveu a queima de livros (Crédito:Divulgação)

Luta constante

A censura sempre foi uma constante na história da arte. No século XVI, a Igreja Católica pediu a um pintor que tapasse a genitália de algumas figuras pintadas por Michelangelo na Capela Sistina. O quadro “A Origem do Mundo”, de Gustave Coubert, de 1866, passou anos escondido até ser exposto em um museu francês e se tornar uma das obras mais importantes da arte moderna. “Entretanto, ela é recorrentemente censurada nas ‘redes sociais’, até pelo próprio Facebook, causa escândalo quando aparece em capas de livros ou em jornais. É a pintura de uma vagina. Apenas isso”, afirma Alambert, da USP.

Visões de mundo

A americana Joy Garnett afirma que a sombra da proibição está sempre presente em qualquer mostra e é uma constante no trabalho dos artistas. “No geral, instituições querem evitar controvérsias e não entendem que a importância é justamente mostrar diferentes visões de mundo”, diz, referindo-se à nota do Banco Santander em que é feito um pedido de desculpas “a todos aqueles que enxergaram desrespeito a símbolos e crenças na exposição ‘Queermuseu’” seguido da afirmação de que “isso não faz parte de nossa visão de mundo.” “Arte não é sobre beleza. É preciso garantir que muitos pontos de vista sejam apresentados para termos uma sociedade em que não se viva só um tipo de experiência.”

Obras da discórdia
Alguns trabalhos polêmicos da mostra