Chama-se Paraíso o bairro onde vivenciaram o inferno pelo menos mil oponentes, na cidade São Paulo, do regime de exceção da ditadura militar instaurada no País em março de 1964. Ela, a ditadura, apeou do poder um governo legitimamente eleito. Ele, o inferno, foi criado em setembro de 1970 para escudá-la e funcionou feito uma usina de torturas e fraturas e produção de mortes durante uma década. Tratava-se do Destacamento de Operação de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna, a famigerada sigla DOI-Codi: uma masmorra constituída por cinco blocos, com entradas pela rua Tutóia, 921 (parte da frente), e rua Tomás Carvalhal, 1030 (fundos). Foi a mais brutal linha de montagem de massacre no militarismo, e não menos que cem pessoas foram ali assassinadas. Na semana passada, em um trabalho inédito de história e arqueologia forense, especialistas das Universidades Federais de São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina, USP e Unicamp começaram a esquadrinhar e vasculhar os mil e trezentos metros quadrados do local, munidos da mais alta tecnologia. Objetivo: descobrir resquícios que possam ser valiosos na identificação de desaparecidos políticos. “A arqueologia vai permitir entender fatos que não foram explicados à sociedade”, diz a professora Cláudia Regina Plens, coordenadora do projeto e do Laboratório de Estudos Arqueológicos da Unifesp.

Marco Ankosqui,

O trabalho envolve fôlego, competência e ideal democrático de toda a equipe – qualificações que não lhes faltam. Envolve, também, diversas etapas, todas elas buscando remontar um espaço que foi alterado intencionalmente por aqueles que participaram da repressão e, claro, pela inexorável ação do tempo. Salas, portas, janelas, celas, grades, passagens de um bloco a outro, oficinas, centros de tortura, tudo, enfim, será periciado sob a perspectiva da arqueologia. Como sempre acontece quando se recorre aos sofisticados meios tecnológicos, há as ferramentas que são de ponta. Nesse caso, pode-se citar georadares que começaram a operar na quarta-feira 17. Ele funcionam até para apontar, por meio de emissão de ondas, se houve alteração também no solo – ou seja, se corpos de desaparecidos políticos estão enterrados no próprio DOI-Codi.

ALTIVEZ Maria Amélia de Almeida Teles: conseguiu a condenação do seu torturador, Brilhante Ustra, ídolo do presidente Bolsonaro. Ele não foi preso dada a abrangência da Lei da Anistia (Crédito:Marco Ankosqui)

Mais: as paredes receberão cuidadosas escavações, quiça o destino revele inscrições significativas de ex-presidiários. Será de grande valia o emprego da substância luminol, utilizada em superfícies para detecção da presença de ferro – e, a partir disso, fazer-se em laboratório a confirmação de hemoglobina humana com olhos em cotejamentos de DNA. Finalmente, para que nada escape desse pente fino arqueológico, todo o local será refeito em 3D para demonstrar a dinâmica da circulação que havia dentro dos prédios e entre eles. “A utilização do georadar com a técnica 3D permitirá a reconstrução do prédio original em ambiente digital”, explica Cláudia Regina. “As pessoa entenderão como foi o passado”.

O DOI-Codi funcionou feito uma usina de torturas e fraturas e produção de mortes. O torturador Brilhante Ustra, ídolo de Bolsonaro, morou no local. Quando algum torturado morria, ele jogava dinheiro para o alto,no pátio, para os agentes pegarem

MASMORRA Celas, celas, celas: “é o inferno no bairro do Paraíso”, diziam os majores que comandavam o presídio

É justamente para espelhar esse passado que se traz, aqui, uma mulher que reúne em si o sofrimento de tantas almas e tantos corpos. E, também, porque essa mulher denuncia os riscos do presente. Seu nome? Maria Amélia de Almeida Teles. Presa com o marido e mais um guerrilheiro, Maria Amélia foi barbarizada nas mãos de seus algozes. Era 28 de dezembro de 1972. Fala a sobrevivente: “fui recebida com agressões pelo então major Carlos Alberto Brilhante Ustra. Na mesma noite, agentes me estupraram. Nos dias que se seguiram, fui torturada com choques elétricos e me levaram para ver o meu marido e o amigo agonizando. Minha irmã, grávida, também foi presa e o major Ustra deu-lhe choques no ventre”.

Brilhante Ustra, que chegou a morar no DOI-Codi, foi condenado pela Justiça como torturador. Faleceu promovido a coronel e é um dos ídolos de Bolsonaro. O vice-presidente Hamilton Mourão já o chamou de herói, dizendo que heróis também matam – Mourão se esqueceu de um fato: heróis matam em filmes, não na vida real; e muito menos torturam. Um fato mensura a personalidade de Ustra. Um dia ele entrou na sala de tortura trazendo pelas mãos a filhinha de cinco anos de Maria Amélia e o irmãozinho de quatro (as crianças haviam sido raptadas). “Olha a mamãe doente”, disse Ustra, sadicamente, apontando a cadeira de metal em que Maria Amélia, ensanguentada, levava choques. A menina, desesperada, gritou: “mamãe, por que você está azul?”. O azul eram hematomas. Ustra costumava dizer: “aqui é o bairro do Paraíso, mas vocês estão no inferno”. A arqueóloga Cláudia Regina, cientista séria que é, trabalha com fatos e verdades. Mostra-se perplexa: “e ainda há gente que não acredita que houve ditadura no Brasil”.