Vitória da bancada da bala – e para isso ela nem precisou se empenhar em conseguir aliados ou ganhar votação na Câmara dos Deputados. Por decreto (o equivalente à canetada, a mais tradicional das nossas características republicanas), o governo federal flexibilizou sensivelmente as regras para que brasileiros possuam armas e munições. Faz todo sentido, assim, a crítrica (talvez mais um desabafo de quem sonha utopias) do presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima: “o governo se preocupa mais em agradar os parlamentares aliados do que em zelar pela vida da população”. A rigor, são diversos os decretos que foram sendo editados na surdina, mas há um momento em que o silenciador falha. Falhou agora e veio a público a flexibilização das normas – não é exagero falar em desmonte do estatuto do desarmamento. Eis algumas das perigosas inovações: ampliou-se de três para cinco anos o registro de armas de fogo, com direito à posse; para se ter arma ou renovar o seu porte, o atestado de capacidade técnica precisará ser renovado a cada década e não mais no intervalo de três anos; a validade de laudo psicológico foi ampliada. Enfim, infeliz e perigosamente, liberou geral.

É incrível que tal flexibilização se dê no exato momento em que o governo tem de enviar trezentos soldados da Força Nacional para o Rio de Janeiro. Será que o Ministério da Justiça imagina que essas três centenas de homens estejam entrando na ex-cidade maravilhosa para comhecer de perto o Cristo Redentor? Pelo sim, pelo não, é bom avisar que a Força Nacional pisa os domínios ainda cabralinos do governador Luiz Fernando Pezão para tentar pôr ordem na casa revirada pela violência. Violência… hum… armas… hum… mas isso não são cosias que se associam? Pois bem: associam-se sim, e sabe-se que, na contemporaneidade do mundo, quanto mais armas nas mãos dos cidadãos de bem, maior o número delas que acabam em poder de bandidos – marginal é treinado em desarmar a vítima, rouba-lhe celular, dinheiro, documentos… e até a arma…e até a vida. Também é sabido (mas autoridades fingem que não sabem) que do próprio aparato estatal repressor vazam armamentos para uso ilegal. No Brasil, o que se esperava era o recrudescimento do estatuto do desarmento, uma vigilância e ainda maior. Mais: dez anos é tempo suficiente para que alguém que demonstrava condições emocionais de portar uma arma de fogo deixe de sê-lo (pergunte-se isso a qualquer psiquiatra), e, assim, ser liberal com armamentos é colocar em risco a própria incolumidade física de quem os possui.

Com certeza a humanidade estaria melhor sem armas – da garrucha ao missel atômico. Chico Buarque escreveu sobre isso em Almanaque, com o brilhantismo de rima interna: “quem não fez a patente da espoleta explodir na gaveta do inventor?”. Especificamente em relação a nós, habitantes da Ilha de Vera Cruz, tudo que precisamos nesse momento de insegurança é de controle mais rígido e não de decretos soberanos – até nos EUA, onde os republicanos defendem o direito de comprar armas livremente com o mesmo fervor com que defendem a educação religiosa nas escolas, o assunto é sempre submetido ao Capitólio. Mais: se o livre acesso a armas já é um absurdo à condição humana em qualquer canto do planeta, no Brasil, em meio à anomia social, a flexibilização das regras se torna algo inacreditável. Ela coincide com a divulgação de dados estarrecedores: cinquenta milhões de brasileiros (um quarto da população do País) teve familiar, amigo ou conhecido vítima de homicídio ou latrocínio. Sempre haverá quem argumente que o estatuto anterior estava desarmando apenas a população honesta e não o assaltante, aumentando a criminalidade. A resposta é simples: isso se deve à ausência de eficazes políticas de segurança pública. Não é (mas não é mesmo) aumentando a circulação de armas que vamos vencer os bandidos – eles são melhores de pontaria e não têm nada a perder na roleta de vida ou morte.