Os argentinos se perguntam “para quê e até quando” tolerar o plano de austeridade do presidente Javier Milei, disse à AFP o economista especialista em tendências sociais e consumo Guillermo Oliveto, às vésperas das eleições legislativas de meio de mandato no domingo (26). O autor de “Clase media argentina: entre el mito, la realidad y la esperanza” (sem tradução para o português) defende que o ajuste iniciado há quase dois anos pelo presidente argentino aprofundou uma fragmentação social que resultou em uma “sociedade dual”: 30% vive bem e 70% sofre.
O governo deverá aplicar “resets” se quiser mudar o humor social, inicialmente benevolente e agora impaciente. Estas são suas principais reflexões:
– Dois anos com Milei –
“Milei é um caso absolutamente inédito: os argentinos detestam o ajuste (orçamentário). Eles gostam de viver bem. Que tenham votado em um senhor que vinha com uma motosserra expressa que chegaram a um momento muito sufocante com o modelo anterior”.
“Disseram: ‘Votei nisto porque entendo que me permite curar de um processo que havia se tornado muito sufocante’, mesmo que tenha que caminhar pelo deserto por um tempo. Isto deu a Milei um bônus, um extra de tolerância”.
“Por isso ele pôde aplicar um ajuste duríssimo, com uma queda do consumo cotidiano só comparável à de 2002, que foi a pior crise da história da Argentina”.
– Impacto social –
“A redução da inflação e a estabilidade, até há pouco tempo, do dólar, é um sucesso valorizado por grande parte da sociedade. Inclusive houve uma espécie de ‘boom’ de consumo para a classe alta ou média alta, cerca de 30% da população: vendas de carros, imóveis e viagens ao exterior”.
“Agora, também encontramos em nossos estudos que 70%, composto pela classe média baixa, trabalhadora, chegam ao fim do mês no dia 15. ‘Pago a dívida, as despesas fixas e fiquei sem dinheiro'”.
“A sociedade que coagula este formato de fragmentação é dual. E o que gera uma sociedade dual? Um consumo dual. Isto aprofundou um processo que já está em curso há anos”.
– Humor social –
“Hoje, começam a aparecer muitas pessoas que dizem: ‘o que já era lento está se tornando eterno’. E questionam: ‘Tudo bem, eu aguentei a motosserra, tive uma paciência inédita, seis meses, um ano, 2024. Em 2025, gostaria de ver algum oásis'”.
“Mas elas não veem isso. O que era um estado de espírito estoico, de prudência e moderação, agora se tornou sacrificial”.
– Paciência –
“Quando alguém de seu círculo íntimo fica sem emprego, a paciência se esgota. Em uma situação de perda de poder aquisitivo, se você tem como gerar renda, mais ou menos consegue lutar. Se perde sua fonte de renda, está fora do jogo”.
“Mais de 200.000 postos de trabalho foram perdidos. A sociedade acompanhou um ajuste muito duro com 60% de aprovação para Milei. Hoje esse número é de 38%”.
– Impacto eleitoral –
“O governo subestimou o impacto que a economia real tem na vida cotidiana, no humor social e, consequentemente, no humor eleitoral”.
“Ter reduzido a inflação era uma condição necessária, mas não suficiente. “Hoje, a principal preocupação gira em torno do emprego, dos baixos salários e do dinheiro que não é suficiente. As pessoas dizem ‘não vivo melhor, não posso me dar ao luxo'”.
“Então: ‘Para que serve o ajuste? Até quando? Me dê uma saída ao cinema, um McDonald’s com as crianças, uma semana de férias, algo para que eu possa continuar te apoiando'”.
“Subestimar as complexidades da trama social produtiva da Argentina um dia cobra seu preço, e foi o que acabou de acontecer em Buenos Aires [onde o partido de Milei perdeu eleições locais no dia 7 de setembro, nota do editor]”.
“Isso foi um sinal contundente demais para não ser ouvido. Aqui há uma necessidade de vários ‘resets’. Conceituais e factuais. Além do discurso, o foco está na economia cotidiana”.