O Brasil segue no caminho inverso em que trilham diversos países da União Europeia e da América Latina — e isso é muito bom. Pela primeira vez na história do País, o Estado concedeu a nacionalidade brasileira a apátridas — no caso, às irmãs Maha e Souad Mamo. O governo cumpriu, assim, com o compromisso que assumiu junto à ONU quando assinou o “acordo para a redução dos casos de apatridia no mundo”. A frase de agradecimento de Maha vai além do formalismo, mostra o conforto psíquico da emoção de pertencimento à uma Nação: “finalmente existo”. Pode-se ressaltar a concretude de tal sentimento se o cotejarmos com o seu avesso, se o compararmos, por exemplo, com a dolorida frase de Gustav Mahler, “o maior gênio da música erudita” (opinião de Arnold Schönberg, com a qual concorda o autor desse artigo). Disse Mahler: “sou três vezes apátrida: como natural da Boêmia, na Áustria; como austríaco, na Alemanha; como judeu, no mundo inteiro. Em toda parte, um intruso; em nenhum lugar, desejado”.

Fica explicado, assim, porque classificamos de “muito bom” o Brasil caminhar no rumo inverso ao de tantos países no campo de acolhimento de apátridas e imigrantes. Tomemos dois episódios amedrontadores para a humanidade, um que vem da Itália, outro, da Dinamarca. Um prefeito italiano foi preso porque deu emprego a refugiados africanos em sua cidade. Já o governo dinamarquês, que decidira pelo confisco de pertences de imigrantes, agora ordena a destruição de suas comunidades, instituindo, dessa forma, um cruel método de aculturação à força. Desmonta, em decorrência, as franjas do bem-estar do pertencimento que atenuam a solidão física e emocional de quem é obrigado a emigrar.

Estamos hoje, em diversas partes do mundo, voltando aos nacionalismos e extremismos da época das “leis de habilitações” hitleristas que levaram à Segunda Guerra Mundial. Voltamos aos “indesejados da Europa”, dos quais nos falou umas das maiores pensadoras de todos os tempos: a “teórica da política” Hannah Arendt (detestava ser chamada de filósofa), ela própria, durante anos, uma apátrida.

Também no Brasil, em Roraima, já assistimos a episódios de intolerância com imigrantes venezuelanos, alguns deles agredidos até a morte por grupos de brasileiros. Há um cabo de guerra: em uma das extremidades tem-se essas atitudes passionais por parte da população, na outra ponta vê-se a concessão da nacionalidade brasileira, em um ato do Estado, a duas mulheres apátridas. Quem ganhará a disputa? Vencerá o bom-senso do acolhimento se o Estado brasileiro mantiver a racionalidade da política de tolerância e punir aqueles que, à margem da lei, promovem linchamentos. Em outros países, no entanto, prenuncia-se o vencedor — e também já são vivenciados, em 2018, os anos de 1930. É a roda da história girando para trás.

 

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