Se não pode impor sua visão, destrua. Essa é a filosofia do governo Bolsonaro em áreas como cultura e meio ambiente, e também a filosofia do Procurador Geral da República Augusto Aras no combate à corrupção.
Aras gostaria de concentrar em um órgão ligado ao seu gabinete todos os casos dessa área investigados por forças-tarefa do Ministério Público Federal. É assustador imaginar que uma única autoridade, nomeada pelo presidente da República (qualquer presidente, não apenas Bolsonaro), teria o poder sobre inquéritos que atingem políticos e empresários corruptos. Felizmente, a ideia parece encontrar resistência.
Assim, o PGR partiu para nova abordagem. Manobrou no Conselho Superior do Ministério Público para que todos os processos das Lava Jato de Curitiba e de São Paulo sejam encaminhados ao seu “procurador natural”, ou seja, ao integrante do MPF que os receberia se as forças-tarefa não existissem.
No Paraná, a subprocuradora Áurea Pierre terá volumes e mais volumes de inquérito despejados sobre sua mesa. Poderá, se quiser, pedir ajuda de colegas para encaminhar o trabalho. Ou poderá deixar tudo acumulado.
O mesmo vale para a subprocuradora Viviane de Oliveira Martinez, em São Paulo. Sua disposição para trabalhar em equipe já ficou evidente. Nesta semana, sete integrantes da força-tarefa pediram demissão coletiva por “incompatibilidades insolúveis” com ela.
No começo de julho, o braço direito de Aras, o vice-procurador-geral Humberto Jacques, rejeitou prorrogar a participação de dois procuradores na força-tarefa da Operação Greenfield (o último com dedicação exclusiva demitiu-se hoje). Naquela ocasião, ele afirmou que o modelo das forças-tarefa estava esgotado. Além de “incompatível com perfil constitucional do Ministério Público”, ele era desagregador e disruptivo devido à “ampla cobertura midiática de casos milionários, com réus notabilizados”.
Dito de outra maneira, o problema das forças-tarefa seria ensejar o surgimento de procuradores-celebridade como Deltan Dallagnol.
Também acho que procuradores e juízes não devem ser tratados como estrelas. Eles podem se ver tentados a usar métodos heterodoxos para manter sua “taxa de sucesso” em investigações. É o que parece ter acontecido em alguns episódios da Lava Jato.
Ainda assim, o argumento de Jacques é capcioso. Acabar com as forças-tarefa para impedir o surgimento de novos Deltans equivale a jogar o bebê fora, juntamente com a água do banho.
Para escrever o livro Polícia Federal – A Lei É Para Todos (que serviu de base para o filme de mesmo nome), fui conhecer de perto o trabalho não dos procuradores, mas dos policiais ligados à Lava Jato. As razões para a existência de forças-tarefa nas duas instituições são as mesmas. Crimes de colarinho branco, em particular aqueles que envolvem lavagem de dinheiro, têm engenharia complicada. É preciso ter conhecimento específico para lidar com eles, métodos especiais de investigação e atenção concentrada.
A Lava Jato deixou vários legados para a Polícia Federal. No campo da perícia, por exemplo, houve avanço significativo na maneira de lidar com provas contidas em equipamentos eletrônicos e arquivos digitais. No auge da operação, mais de 30 peritos chegaram a trabalhar juntos em Curitiba.
Os delegados da PF não se tornaram celebridades, mesmo depois de virar personagens de filme. Não é inevitável que os indivíduos se sobreponham às instituições às quais pertencem. Cabe ao MPF desenvolver salvaguardas para impedir esse desfecho, em vez de lançar mão do argumento risível de que a ferramenta das forças-tarefa está “esgotado”. Diante de crimes complexos, com muitos participantes, o modelo de atuação concentrada continua sendo tão válido quanto sempre foi.
A cruzada de Aras e sua turma contra as forças-tarefa mostra o pior lado das corporações: o das lutas intestinas por poder e controle, e não pelos resultados que interessam aos cidadãos.
Quanto aos resultados da Lava Jato daqui em diante, é bem provável que eles deixem de aparecer. Se isso acontecer, Aras e Jair Bolsonaro, o político que o colocou no cargo, serão responsáveis pelo silenciamento da mais importante operação anticorrupção que o país já conheceu.
PS: É vergonhoso. A Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro livrou o prefeito Marcelo Crivella de um processo de impeachment por usar funcionários públicos para impedir cidadãos de falar com a imprensa. Entre os 25 votos a favor de Crivella, conta-se o do filho do presidente, Carlos Bolsonaro.