Foi da experiência da mãe como trabalhadora doméstica que a cineasta paulista Karoline Maia, de 26 anos, teve a ideia de produzir um documentário que contasse a história de outras mulheres como ela. O longa-metragem Aqui Não Entra Luz, atualmente em fase de montagem, faz um paralelo entre as senzalas usadas no período da escravidão com os quartos de empregada. Para concluir a produção, a diretora e roteirista organiza uma campanha de financiamento coletivo que já arrecadou cerca de R$ 100 mil.

Segundo Karoline, a ideia do filme, que terá narração em primeira pessoa, surgiu em 2016, após observar por anos o trabalho da mãe e, assim como ela, ser vítima de racismo. Para contar as histórias, além de utilizar imagens de arquivo da própria família, a cineasta percorreu seis Estados brasileiros – São Paulo, Maranhão, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais – a fim de mostrar a estrutura da casa grande e senzala, até chegar aos quartos destinados às empregadas domésticas que existem nas residências brasileiras até hoje.

Durante a pandemia do novo coronavírus, a situação de empregadas domésticas no Brasil entrou no debate após relatos de profissionais que foram expostas ao vírus pelos patrões ou acabaram dispensadas sem pagamento. A primeira morte causada pela covid-19 no Rio de Janeiro, por exemplo, era uma trabalhadora que pegou o vírus após a patroa voltar de uma viagem à Itália. No mês passado, ganhou repercussão nacional o caso de Miguel, um menino de 5 anos que foi deixado sozinha no elevador pela patroa da mãe e caiu do nono andar de um edifício no Recife.

O contexto fez com que Karoline buscasse uma forma de financiar o longa de forma independente para que ele pudesse fazer parte da discussão. Até a segunda-feira, 6, foram arrecadados R$ 102 mil por meio de um site de financiamento coletivo. A meta é R$ 130 mil até o próximo sábado, 11.

“Vimos que o filme precisava ir para a rua logo para colaborar com essa discussão toda que está acontecendo. Enquanto a gente faz a campanha, ele já colabora de alguma forma porque muitas pessoas estão sendo tocadas por isso”, contou Karoline ao Estadão.

Na visão dela, “as últimas semanas têm escancarado muitas coisas que já existem, mas agora estamos sendo bombardeados por imagens, histórias e notícias bastante assustadoras”. “Acho que a relação que se deu durante a quarentena só é mais um sinal de como essa classe média não valoriza o trabalho doméstico, seja não dispensando a sua trabalhadora, a sua funcionária, seja dispensando ela sem remuneração. Então, tudo isso escancara muito mais um problema que já existe. Essa relação já é desigual desde sempre, já é cheia de traços colonialistas desde sempre.”

A cineasta destaca que, com o fim da escravidão, muitas mulheres negras seguiram na atividade doméstica por falta de alternativa, o que acabou se perpetuando por gerações. “Em muitas famílias, é uma profissão geracional, onde a avó foi doméstica, a mãe é doméstica e a filha é doméstica. Quebrar esse ciclo nem sempre é fácil, é um processo bastante longo para algumas famílias para ter uma primeira filha em uma universidade, ou até mesmo a mãe conseguir concluir os estudos”, afirmou Karoline.

Nas peças de divulgação do filme, Karoline compartilha a figura de Laudelina de Campos Melo, fundadora do primeiro sindicato de domésticas do Brasil, em 1936, e afirma que a equipe responsável pelo filme, formada somente por mulheres, busca dar continuidade a sua luta.

“O quartinho da empregada fica sempre nos fundos da casa, ao lado da cozinha. ‘Ela é como se fosse da família’, mas espera todo mundo jantar para comer o que sobrou. Dorme depois, acorda antes”, diz um dos trechos que fazem parte da divulgação do documentário.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.