Após um ano, a guerra na Ucrânia continua a redesenhar a geopolítica mundial. Ela causou a maior mudança na relação de forças entre as grandes potências desde o colapso da União Soviética, em 1989. O conflito completa um ano nesta sexta-feira, 24. Para marcar a data, eram esperados grandes movimentos, de parte a parte. A Rússia tentou, mas não conseguiu, iniciar uma grande ofensiva com os soldados mobilizados no final do ano passado, assumindo o controle sobre o leste ucraniano. O que talvez sinalize melhor o fracasso: a perda de praticamente uma brigada inteira de infantaria, com 5 mil soldados de elite, ao tentar conquistar a pequena cidade de Vuhledar nas últimas semanas. O esperado ataque decisivo não aconteceu por incapacidade militar.
Joe Biden, por outro lado, conseguiu realizar um gesto espetacular ao visitar de surpresa Kiev na segunda-feira, 20. Repetiu, de certa forma, a visita histórica que John Kennedy fez a Berlim, em 1963, garantindo o apoio americano à cidade cercada pelos soviéticos, inclusive com um muro. Demoraria quase 30 anos para que Berlim voltasse a ser uma cidade livre. Antes disso, em 1948, os ocidentais já tinham conseguido furar o bloqueio militar russo, organizando uma ponte aérea para levar alimentos e suprimentos à antiga capital alemã. Mais de 200 mil voos foram realizados em um ano.
É esse compromisso histórico que Biden tentou simbolicamente reeditar na Ucrânia, em defesa do “mundo livre”. E há um fundo de razão para isso. Antes de invadir o vizinho, Putin disse que o desmantelamento da União Soviética tinha sido “a maior catástrofe geopolítica do século XX”. Ele sonhou reconstruir o poderio soviético por meio de um ultrancionalismo chauvinista. Tentou reviver o ideal imperialista dos czares e o Estado opressor construído por Lenin e Stalin. Imita até as barbaridades que esses regimes cometeram na Ucrânia, como saques, limpeza étnica, massacres e crimes de guerra.
Por conta desse retrocesso civilizacional, o mundo se rearranjou. Os EUA voltaram a expandir seu protagonismo militar, a Europa voltou a se unir, países neutros como Suécia e Finlândia se aliaram ao bloco militar ocidental e a Alemanha está em vias de se rearmar, abandonando o pacifismo pós-Segunda Guerra e a aproximação estratégica com os russos. Putin agiu para evitar que a Ucrânia consolidasse sua democracia e se Integrasse à União Europeia, entrando em seguida na Otan (o que nunca foi cogitado, ao contrário da mentira que o russo propagandeia). O russo deseja manter a zona de influência russa até as portas do Mediterrâneo.
Mas hoje Putin está mais isolado do que nunca. A economia russa encolheu nos últimos 12 meses, mas resistiu relativamente bem ao embargo ocidental. Conseguiu isso principalmente com o dinheiro extra da venda de petróleo e gás, ironicamente valorizados pela guerra. Porém, esse bônus está acabando, já que o mercado energético russo cada vez mais está restrito a países como China, Índia e Turquia. Economicamente, a Rússia vai perder o bonde da modernização tecnológica. Politicamente, vira na prática um pária internacional, assim como Irã e Coreia do Norte.
Para responder à bem-sucedida viagem de Joe Biden, restou a Putin romper o último tratado de contenção nuclear em vigor com os americanos, o Novo Start. Em um discurso na Assembleia Federal, nesta terça-feira, 21,acusou o Ocidente de querer transformar “um conflito local em global”. Mas foi exatamente isso que ele conseguiu com sua guerra. Até a ameaça nuclear, que não é levada a sério pela Europa, fica cada vez mais difícil para o russo. A inteligência ocidental aponta que a falta de chips já compromete a fabricação de seus mísseis de última geração. Putin encolheu, assim como o seu sonho de grandeza.