Boa parte da memória do País pode estar correndo o risco de se perder porque o Arquivo Nacional, guardião do maior volume de documentos da época da ditadura, está sendo abandonado pelo governo. Desde que Bolsonaro assumiu, teve início uma sucessão de ataques à instituição, entre eles a publicação do Decreto 10.148 de 2019, que institui a Comissão de Coordenação do Sistema de Gestão de Documentos e Arquivos da administração pública federal e tirou atribuições importantes do Arquivo Nacional. O decreto passou a considerar que os órgãos do executivo federal têm autorização prévia para eliminar documentos sem a necessidade de submetê-los a qualquer tipo de análise técnica.

“Um dos sinais de enfraquecimento é o que acontece com o projeto Memórias Reveladas, desativado desde 2017”  Lucas Pedretti, historiador (Crédito:Divulgação)

Para o historiador Paulo César Gomes, é muito preocupante o que está se passando no Arquivo Nacional, cujo atual diretor, Ricardo Borba D’água, nomeado em novembro do ano passado, não tem qualquer familiaridade com documentação e arquivos. “Em seu currículo consta que ele é ex-funcionário do Banco do Brasil e que pratica tiro esportivo, sem a menor experiência na área de memória da história do País”, conta. Paulo César disse que há uma censura velada dentro da instituição e que o interesse do governo é esvaziar tudo o que seja ligado à documentação dos anos de chumbo da ditadura militar. Ele informou que uma carta aberta com mais de 600 assinaturas de profissionais das mais variadas áreas foi enviada aos membros do Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ), também presidido por Borba D’água. “Ele leu e não deu nenhuma resposta pública”, informou.

A reportagem da ISTOÉ conversou com alguns servidores de carreira do Arquivo Nacional que pediram para não serem identificados, pois, segundo eles, a perseguição interna tem sido grande. Os servidores disseram que, diferente do que foi divulgado recentemente, nenhum documento do Arquivo Nacional foi apagado e que os arquivos continuam disponíveis. “O que aconteceu, e que gerou certa confusão, foi uma decisão do TRF-5, que obrigou que o nome do coronel do Exército Olinto de Souza Ferraz fosse tarjado cada vez que aparecesse nos arquivos. Isso causou uma preocupação não só pela ação em si, mas precedente que pode abrir para que haja censura”, informou um deles.

Outra servidora disse considerar muito improvável que documentos que estejam sob a guarda do Arquivo Nacional sejam apagados. “Alguns documentos são descartados, mas há critérios, passam por uma análise de uma comissão”, afirmou. Para ela, o que mais preocupa são as movimentações internas, os servidores que vêm sendo realocados e o aparelhamento político da instituição, coisa que nunca havia acontecido por lá, e que começou ainda durante o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, quando o ex-diretor do Arquivo Nacional, Jaime Antunes da Silva, foi exonerado depois de mais de 20 anos no cargo.

Projetos abandonados

Para o pesquisador e historiador Lucas Pedretti, um dos maiores sinais de enfraquecimento do Arquivo Nacional é o que vem acontecendo com o projeto Memórias Reveladas, que é um centro de referência de memória política do Brasil, criado em 2009 para lidar com o tema dos arquivos da ditadura. A ausência de novos projetos realizados no âmbito do Memórias Reveladas desde 2019 chama a atenção. De lá para cá, houve uma queda no orçamento do projeto cuja uma das suas iniciativas mais importantes é o Prêmio de Pesquisa Memórias Reveladas, que tinha um edital bianual e premiava três trabalhos científicos realizados a partir da documentação da ditadura. Houve quatro edições desse prêmio. “O último edital foi em 2017 e havia a previsão de um edital em 2019. Já estamos em 2022 e não houve mais edital algum e nem justificativas por parte do Arquivo Nacional para que não fossem realizadas novas edições do prêmio”, disse o historiador.

DESORDEM Sem qualquer análise técnica, funcionários têm autorização para eliminar documentos que guardam episódios da história brasileira (Crédito:Divulgação)

Para Pedretti, esse é um indicativo bastante claro de que não há interesse da parte do governo de promover políticas de memória ou reparação em relação ao período da ditadura. O historiador, que foi um dos premiados no edital de 2017, diz que a publicação deveria ter ficado pronta no final do ano retrasado e até agora nada aconteceu. “Começamos a denunciar isso em meados do ano passado, ainda antes da troca de diretor, e agora há um indicativo por parte do arquivo de que tudo será publicado, mas nada chegou às nossas mãos ainda. Sem dúvida há um claro esvaziamento do projeto”.

O ex-diretor do Arquivo Nacional, Jaime Antunes, que ficou mais de 20 anos à frente da instituição, lembra que o órgão já ocupou um lugar mais central na administração pública e que hoje perdeu esse lugar, assim como aconteceu com a Casa de Rui Barbosa e com a Funarte. “O que está acontecendo hoje afeta a questão da transparência do estado, assim como uma série de questões de administração pública. O Arquivo Nacional está vivendo uma enorme fragilidade institucional”.

Para Antunes, o decreto 10.148 de dezembro de 2019 e que agora veio à tona tirou uma atribuição muito importante do Arquivo Nacional, pois garante que quem produz os documentos é quem define sobre sua eliminação. “Esse decreto dá atribuições aos órgãos que não têm a menor condição de executar tais atribuições, pois o servidor responsável agora pode ser qualquer um e não um técnico arquivista”. Ele afirma ainda que na atual gestão do Governo Federal a regulamentação da Lei de Arquivos sofreu um duro golpe, que representa, no seu entender, um retrocesso na política de arquivos até então estabelecida.