Nesta quinta-feira, 26, comemora-se o centenário de nascimento do pintor cearense Antonio Bandeira (1922-1967). Em homenagem ao artista, pioneiro do abstracionismo no Brasil, a Galeria Almeida & Dale abre, no sábado, 28, a exposição Desfolharei Meus Olhos Neste Escuro Véu, com curadoria de Galciani Neves. Não é apenas uma mostra comemorativa, mas uma tentativa de identificar na poética informal de sua pintura o Bandeira que poucos conhecem, distante dos estereótipos consagrados – o do boêmio dos bares frequentados pelos existencialistas, por exemplo.

Que papel teve sua condição de descendente de africanos na busca de uma pintura em que a subjetividade marca presença no lugar de um discurso racionalista? A resposta sobre a lírica topologia espacial das pinturas de Bandeira aparece logo à entrada da exposição, mais precisamente nos autorretratos em que o pintor fez questão de afirmar a cor de sua pele.

Entre as 53 obras selecionadas para a mostra, os autorretratos vão introduzir o visitante em um universo que vai da chegada de Bandeira a Paris, no rescaldo da depressão que ficou da 2ª Guerra, até 1967, ano de sua morte, provocada por uma anestesia para uma cirurgia nas cordas vocais.

INDIFERENÇA

Bandeira suportou em vida as biografias deturpadas porque, de certa forma, assumira (de fato) o pensamento do religioso medieval francês Jean Buridan – “em mim sempre predominou a liberdade da indiferença”, dizia o pintor, criando uma ponte estética com a filosofia moral do francês. Para Buridan, há uma mecânica única para todas as coisas criadas, mas isso não significa que o homem deva resignar-se a tomar só decisões “racionais”. Como o asno da fábula de Buridan, indeciso entre dois montes de feno, por vezes é preciso seguir o instinto.

Bandeira assim o fez. O pintor que adorava a luz do Ceará foi para Paris com uma bolsa, em 1946, e lá se adaptou, apesar da situação miserável em que a França se encontrava no fim da guerra. Foi pesquisando nas cartas que deixou, entre as quais para amigos como o diplomata libanês Salah Stétié (1929-2020), que a curadora Galciani Neves descobriu como a amizade, para Bandeira, era tão importante como a própria arte – e mais que o nacionalismo. Salah sentia-se em casa em Paris (mais do que no Líbano). Bandeira, idem. Seja frequentando os cafés de Montparnasse ou filosofando em sua mansarda no Quartier Latin, onde instalou seu ateliê, os amigos sempre foram os personagens mais importantes.

CARTAS

No conjunto de cartas reunidas pela curadora estão algumas para amigos brasileiros, como o poeta Manuel Bandeira. Elas estarão expostas numa vitrine com outros documentos, mas o que chama a atenção de imediato são os espelhos com os autorretratos do artista. A curadora justifica essa ferramenta reflexiva como uma metáfora da ampliação da imagem de um Bandeira pouco estudado, que tinha consciência de sua cor e origem. E que, além disso, confrontou os conservadores de sua época (inclusive os franceses) para impor seu abstracionismo informal, composto por manchas e referências à paisagem noturna da urbe. “Num dos textos que encontrei, ele diz que nasceu durante um eclipse, que sua cor tinha o Sol e a Lua em confluência.”

Na primeira sala estão paisagens noturnas e composições em que a cor preta predomina. Na segunda sala, o azul marca presença nas paisagens imaginárias de Bandeira. Na terceira, as árvores afirmam um cromatismo múltiplo. Na quarta, estão sete obras vigorosas, “agressivas”, segundo a curadora. “A seleção de peças vai se costurando pelos autorretratos pintados pelo artista em diferentes épocas”, conclui a curadora, que rejeitou a ordem cronológica por considerar que, embora profundo, não foi só o impacto da obra de Wols (o alemão Alfred Otto Wolfgang Schulze, egresso da Bauhaus) que conduziu Bandeira ao abstracionismo lírico em 1947.

TRAVESSIA

“Ele morou na periferia, dizia que a sujeira de Paris era a coisa mais importante em sua pintura”, lembra a curadora. Para interpretar a travessia do Atlântico feita por Bandeira e a razão de ter morado tanto tempo em Paris, longe da luz tropical, Galciani convidou o artista João Simões, que se apropriou de um texto de Marguerite Duras (As Mãos Negativas, 1978), em que a escritora fala do contorno de mãos espalmadas nas grutas que usam as cores predominantes nas telas de Bandeira. É uma videoinstalação em que Duras e o Nobel africano Woyle Soynka surgem amalgamados para falar da travessia oceânica, da necessidade de descer a falésia e vencer o medo. Afinal, não foi essa a jornada de Bandeira?

Serviço:

Desfolharei Meus Olhos Neste Escuro Véu

Galeria Almeida & Dale.

R. Caconde, 152, tel. 3882-7120.

2ª/6ª, 10h/18h. Sáb., 11h/16h.

Abre dia 28/5. Gratuito. Até 2/7

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.